sexta-feira, 10 de março de 2017

O Público e o Privado


A fronteira que se estabelece entre o público e o privado sempre exigiu reflexão às Ciências Sociais. Tais conceitos são instáveis, uma vez que o público e o privado se misturam constantemente em diversas situações. Podemos dizer que grande parte daquilo que é o nosso quotidiano dança nessa fronteira entre o que se pretende resguardado e a resguardar o que se exige que seja público, o que se aceita tornar público e ainda o que se pretende manter privado. Hoje, a reflexão permanece, pontuada agora por questões que surgem com o desenvolvimento tecnológico.
Face às ameaças do chamado “terrorismo” do séc. XXI, os sistemas de vigilância estão cada vez mais apertados (logo, intrusivos) e o direito à privacidade está em debate desde então. Paradoxalmente, há um certo “desperdício” de privacidade que nasce com a chegada das redes sociais: há quem partilhe com centenas de pessoas (vulgo, “amigos”) todas as fotografias de férias, todas as conquistas dos filhos documentadas em vídeo ou tudo o que almoçaram e jantaram ao longo do mês. É verdade que se essa possibilidade existe, é um direito usá-la. É também verdade que sempre houve quem se encontrasse mais exposto: as chamadas figuras públicas, (precisamente porque a sua vida é mais pública que privada). O que nos leva a outra reflexão: o que hoje acontece é que, de certa maneira, podemos todos ser figuras públicas. Aliás, ser um cidadão mais anónimo parece até significar que se é, de certa forma, menos importante. Quando se pergunta às crianças o que querem ser quando forem grandes ouve-se demasiadas vezes: “famoso”. Ou seja, a fama deixa de ser uma consequência natural de um trabalho ou conquista para ser um fim em si. Ser famoso é ser visto, ser falado, logo, ser “alguém”.
O problema é que isto implica um mundo em que só a visibilidade e a projeção no mundo exterior é que parecem validar o que somos (ou quem somos). Quem não mostra é como quem não existe. Mas quando tudo se torna visível, o que sobra para sonhar? Quando tudo se torna vendável o que sobra de “nosso”? Ao mostrar-se tudo a todos nada mais resta de "íntimo". A intimidade, o mistério que só se revela a quem se quer, permanecerá sempre como um nicho mágico a proteger. Certo é que, nas suas origens burguesas, ela consistia nas convenções de decoro - honra, pudor, vergonha - que protegiam o corpo, o sexo e as emoções do olhar alheio. Mas a intimidade é muito mais que isso: é o que de mais profundo há em cada um de nós. É o que nos distingue dos restantes e o que partilhamos com quem nos é especial. Mais, é exatamente por meio dos conteúdos internos e íntimos que se torna possível discernir o mundo interno do mundo externo. A intimidade contribui para a delimitação do espaço psíquico, para aquilo que nos separa dos outros. Sem a preservação do privado — do íntimo, da profundidade — seremos todos iguais. E isso só pode ser muito triste.

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