sábado, 6 de fevereiro de 2016

Quando dói

Memory (The Heart) - Frida Kahlo
Há muitos anos atrás visitei uma exposição interactiva chamada “Bom dia medo!”. À entrada, todos os meninos escolhiam e sinalizavam, de entre vários, qual o seu maior medo. Entre as opções encontravam-se o medo do escuro, o medo dos animais ou o medo dos desconhecidos mas recordo-me de constatar que quase todas as crianças escolhiam o medo da dor.  
Numa fase precoce do entendimento, tememos mais a dor física (as quedas e trambolhões, as feridas, as vacinas) mas mais tarde, percebemos com facilidade que há outras dores mais terríveis: as dores da alma. Hoje sabemos que toda a dor se processa no cérebro, seja lá de que origem for. Mas é noutro lado que se sente: ninguém quer sofrer cá dentro, no coração. 
O fenómeno da dor (ou das várias formas de se sentir dor) é algo muito complexo: onde uns a sentem, outros não sentem nada, e o que representa dor para uns é diferente do que representa dor para outros. Coisas que antes doíam, deixam de doer. Coisas que nunca doeram, passam a doer. A dor é uma percepção plástica e móvel, que se altera e migra no espaço e no tempo. A dor é também um sintoma: a dor fala sobre muitas coisas. Uma dor de cabeça pode falar de ansiedade, uma dor de barriga pode falar-nos de medo, uma dor nas pernas pode falar-nos de dificuldades no processo de autonomia, entre outras situações. Em boa verdade, sentimos medo da dor física mas aquilo que nos marca é a correspondente dor mental.
Como se não bastasse, não só tememos a dor-em-si como tememos a hipótese de a sentir. Essa mesma antecipação da dor, já causa, em certa medida, sofrimento. Chamamos-lhe angústia, mas a angústia também “dói”. Corrói por dentro, torce-nos as entranhas, tira-nos o sono, a fome, a paz. Ou seja, há o medo da dor mas há também a dor do medo. O medo nasce cedo porque cedo se sabe que muita coisa, no nosso existir, dói. As experiências da dor são inevitáveis. Muitas surpreendem-nos logo dentro da barriga da mãe: desconfortos vários, de maior ou menor intensidade, que a cada sensação rapidamente nos condicionam a não experienciar aquilo mais nenhuma vez. Mas ela regressa sempre, de todas as maneiras. Em desconfortos, outros. Em desencontros, muitos, entre o nosso sentir e o sentir dos outros, pelas perdas sucessivas que vamos acumulando, pelas doenças do corpo e pelos males da alma, há demasiada coisa que dói e é disso que fugimos.
Talvez a melhor forma de lidar com a dor seja, em primeiro lugar, parar de fugir: aceitá-la. É preciso aceitar a dor. É preciso aceitar que ela faz parte da vida: da nossa e da dos outros. É na aceitação da dor que o caminho se torna mais fácil. A vida vai doer, não nos iludamos — coragem. Que isso não nos impeça, jamais, de viver. A vida vai doer mas há outra coisa que sabemos: à partida, nada dói para sempre. Tudo passa. E é nessa certeza que encontramos o conforto necessário para não morrermos de medo todos os dias. Venha o que vier, venha a pior tempestade, haverá sempre de seguida, uma bonança. É desse agridoce que surgem as melhores histórias, os melhores contos, os melhores poemas.