sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Redes em Fúria


Cenários: “A campanha publicitária que enfureceu as redes”  demite-se um diretor de marketing. “O comentário que enfureceu as redes” exige-se um pedido de desculpas em horário nobre. “O livro que enfureceu as redes” um autor indignado assegura que escreve o que bem entende. “A fotografia que enfureceu as redes” termina um casamento. É complicado. O risco de “enfurecer as redes” é cada vez mais vulgar e, cuidado, elas enfurecem-se com facilidade. São, digamos, ultrassensíveis. Pior, estão sempre atentas, mais atentas que uma “velhota” à janela. O que pensar de tudo isto?
As redes sociais (Facebook, Orkut, Twitter, Instagram, Linkedin, Snapchat e outras) são aplicações que chegaram para, de alguma forma, ligar as pessoas. É produto (e contributo) da (para a) globalização. Nunca um grupo tão grande de pessoas se terá articulado desta maneira, numa conexão ao segundo. Logo, há uma opinião global muito rápida e muito forte que emerge em todas as circunstâncias. Estas redes permitem uma nova maneira de participação da sociedade, através de aplicações que suportam e facilitam (em certa medida) as relações humanas, e mais, com lugar para todos. Assim, as pessoas estão hoje, mais do que nunca, de olhos postos umas nas outras e nas mudanças no mundo, ao segundo. Se, por um lado, pode dizer-se há uma vigilância/controlo que talvez impeça as coisas “más” de proliferarem graças à sua rápida exposição mediática, por outro lado, há um limite muito ténue entre isso e uma constante “caça às falhas alheias” e subsequentes juízos de valor. Que influência queremos que estas redes tenham nas nossas vidas? 
Em primeiro lugar, sempre que contribuímos para um destes fenómenos de crítica em massa, esquecemo-nos que um dia podemos ser nós debaixo de fogo (embora isso seja tanto mais provável quanto maior a exposição pessoal). No entanto, basta uma afirmação infeliz, um momento menos adequado, uma opinião pouco pensada e estala a polémica. A situação torna-se mais grave quando entramos no campo do “cyberbullying”, i.e., criticando sob a forma de um violento “apedrejamento” verbal em praça pública. Violento porque transbordante de agressividade e discursos de ódio. Porquê? Importa lembrar: por detrás dos monitores o filtro torna-se muito menor, somos todos muito valentes e é fácil tornar o outro num saco de boxe da nossa própria irritabilidade. Violento, também, por ser excessivo: há, no geral, pouca contenção. Podemos dizer que está hoje muito diluída a crucial fronteira entre o pensar e o "falar", pois o "falar" está à distância de um click   é fácil e não tem grandes implicações. 
Em segundo lugar, abordam-se estranhos, (des)tratando-os num "tu cá tu lá" e ajuizando sobre a sua vida — há uma falsa sensação de intimidade que deriva desta dita “ligação em rede”. Ao longo dos tempos, os limites do comportamento aceitável e as normas de funcionamento da sociedade em geral tornaram-se muito menos rígidos, mas teremos sempre de avaliar se essa transição nos trouxe vantagens em cada situação específica. É preciso ir aferindo, dinamicamente, quais os limites a manter e quais os limites a abolir. Certo é que há uma forte relação entre o que se passa nas redes sociais e a perda de fronteiras fundamentais da convivência social: há uma fronteira entre a minha opinião e a opinião do outro, há uma fronteira entre desacordo e ofensa, há uma fronteira entre pensar e falar. Somos livres de querer esticar esses limites (a democracia permite e justifica muita coisa) mas aceitemos as consequências: um dia podemos querer esses limites para nos defendermos e eles não estarão lá.
Por último, mas talvez o mais importante, é constatar que esta janela constante para o mundo impede-nos de olhar mais para nós, no sentido introspectivo e evolutivo. Distraídos que andamos a espiar a vida de fulano, a desdizer sicrano ou a julgar beltrano, torna-se mais fácil alienarmo-nos daquilo que verdadeiramente importa: construir para nós e para os nossos, dentro das nossas casas e na nossa verdadeira rede social, real, uma vida plena e conforme aquilo em que acreditamos. A vida dos outros, a opinião dos outros, os comportamentos dos outros, só a eles lhes diz respeito. Se não nos identificamos, afastemo-nos. O silêncio e a indiferença podem ser armas tão ou mais poderosas que o confronto. Cada um cuide de si e o mundo será, então, um lugar melhor.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Disponibilidade Emocional

A Família - Gustav Klimt
O conceito de disponibilidade emocional começou a ser trabalhado na década de 70. Terá nascido, assim como muitos outros constructos, dos trabalhos de John Bolwby sobre a teoria da vinculação (a forma como se desenvolviam os laços afetivos entre as mães e os seus bebés). Estávamos nos anos 50 e soube-se então que um dos principais requisitos para uma relação saudável entre as mães e os seus filhos (hoje diríamos “entre os pais e os seus filhos”) é a disponibilidade emocional dos progenitores. Actualmente, este conceito já não se aplica unicamente às relações parentais, tendo sido alargado para as várias relações que desenvolvemos ao longo da vida.
A disponibilidade emocional é um estado de “concavidade”, como diria Maria João Saraiva. Se disponibilidade é, por exemplo, receber alguém em minha casa, disponibilidade emocional é receber alguém “em mim”. Isso implica deixá-lo aproximar-se e ceder-lhe espaço mental e afetivo (pensar nele, preocupar-me com ele, cuidar dele, brincar com ele, estar com ele, sofrer com ele). Implica ainda abrir o meu coração a uma relação íntima com os riscos que todas as relações implicam: conflitos, tristezas, sacrifícios. Estar emocionalmente disponível é a capacidade de me ligar a alguém de forma autêntica, intuitiva e dedicada. É abraçar, entendendo e aceitando a pessoa como ela é ou conforme está, e deixando-a ir e vir nos seus movimentos de vida. Exige criar um lugar dentro de mim onde moram as coisas do outro: as suas necessidades emocionais e os seus desejos mais sensíveis. Em certa medida, o outro passa a habitar em mim. E a “coisa” deixa de ser somente sobre nós.
A disponibilidade emocional é-nos exigida em grau diferente em função das relações, sendo entre pais e filhos que atinge o seu expoente máximo, pelo grau de dependência e fragilidade dos mais pequenos. As relações românticas, pelo grau de intimidade que se estabelece, também são exigentes, assim como as amizades mais próximas. As relações terapêuticas, idem, um bom terapeuta tem de ser “espaçoso”. Também em momentos de crise dos entes mais queridos nos é pedido, quase intuitivamente, maior disponibilidade emocional: para acolher a sua dor, os seus medos ou a sua zanga.
Porém, somos humanos. A nossa disponibilidade emocional é variável, mas estaremos sempre mais disponíveis para o outro quanto maior o nosso bem-estar. É preciso que estejamos relativamente tranquilos e que a nossa “barriga” esteja mais ou menos satisfeita, afetivamente falando, para que possamos, tantas vezes, abdicar de nós em detrimento de alguém. Em certos momentos, podemos não conseguir (e em outros nem sequer devemos) fazê-lo. Ainda, quando existe trauma severo na nossa vida e estamos focados na proteção do nosso próprio psiquismo, torna-se impossível intuir e responder às necessidades afetivas do outro. Imperam as dificuldades relacionais — as intolerâncias, os desencontros, as inseguranças, as birras, as “claustrofobias”, angústias de várias espécies que impedem um encontro amoroso sintónico. Infelizmente, a indisponibilidade emocional funciona, tantas vezes, como um “tiro no pé”: quem não se dá, também não recebe. 

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Por Cima das Vossas Cabeças


Nos Estados Unidos surgiu um termo muito curioso: helicopter parenting (isto é, “parentalidade helicóptero”). Como o nome indica, os pais helicóptero sobrevoam a vida dos seus filhos. É um comportamento de busca e vigilância sistemática e acontece geralmente sob o pretexto de querer proteger as crianças. Porém, a hiperprotecção é apenas um pretexto que nasce das angústias parentais, que assim são ilusoriamente acalmadas através do controlo. Na verdade, controlo e hiperprotecção são uma e a mesma coisa. 
Há quem tente controlar a vida dos filhos ao longo de todo o seu desenvolvimento. Interferem frequentemente na resolução de problemas dos filhos sem que estes o peçam, seja na creche, na faculdade ou no trabalho. Indignam-se por eles, pensam por eles, falam por eles, agem por eles, decidem por eles. Interferem no tipo de brincadeiras que as crianças têm, na forma como o professor ensina, nos trabalhos de casa, verificam-lhes as mochilas e a caligrafia, escolhem-lhes a roupa, telefonam-lhes quatro vezes ao dia, vigiam-lhes os amigos, os namoros e quem sabe os namoros dos amigos. Em casa, desde cedo, substituem-nos nas tarefas mais básicas: arrumar o quarto, fazer a cama, colocar a loiça suja na máquina e até apanhar a roupa suja do chão. Justificam-no dizendo que quando são os pais a fazer, fica melhor feito, ou achando que os filhos são demasiado pequenos para ajudar. Mas mais tarde, continuam a fazê-lo; ou porque já tarde demais para introduzir hábitos que deveriam ter sido enraizados mais cedo, ou simplesmente porque a necessidade de controlar leva-os a substituir os outros nas suas tarefas. É que encontramos pais helicópteros com filhos pequenos mas também com filhos universitários/adultos. Ou seja, se os filhos deixarem, isto não acaba pode durar toda uma vida. Os pais helicóptero relacionam-se com eles esmiuçando e comandando o seu quotidiano como se tivessem cinco anos: "Já almoçaste?", "Já ligaste ao teu padrinho?", "Queres que te acorde amanhã?", "Quando é que tens aquela reunião?", "Já te marquei dentista". Os pais helicóptero fazem-se presentes a toda a hora.
Estar atento e presente na vida dos nossos, é fundamental, mas é outra coisa. Estar atento/presente é conversar, orientar através das perguntas necessárias e escutar com abertura. É proporcionar estrutura, fornecer regras de funcionamento, algumas inflexíveis e outras mais flexíveis. Controlar é de outra natureza, vem do âmbito da intrusão e do autoritarismo, significa que as crianças/jovens ficam sem espaço de manobra para pensar/viver responsavelmente as suas próprias experiências e suas consequências.
Dentro de certos limites, há uma margem que é das crianças e dos jovens, da sua liberdade, e do fluxo da vida. Quando assim não é, estamos a ensinar às crianças que elas precisam de quem faça por elas porque, sozinhas, não sabem como fazer ou resolver. Dizemos-lhes que não sabem viver sem nós (e que não precisam de crescer porque estamos aqui). Estamos a impedi-las de tomar decisões, de se sentirem competentes, ou então, de errar e aprender com isso. Estamos a impedi-las de experimentar coisas e de encontrar limites, para se conhecerem melhor. Estamos a impedi-las de criar a consciência de que fazem parte de um sistema e de aprender que nem tudo gira à sua volta (e que não estaremos sempre por cima das suas cabeças). Estamos a criar filhos dependentes, pois toda a sua vida é um conjunto de sobreposições, imposições e diretrizes. A “hiperprotecção” das crianças não é coisa boa, boicota o desenvolvimento e prejudica a autonomização. Amar o outro, mais do que impedi-lo de sofrer, é dar-lhe as regras básicas e deixá-lo viver e fazer escolhas. O controlo é uma ilusão. A vida é imprevisível e é uma omnipotência achar que sabemos sempre o que é bom para os outros. Deixemos os “nossos” caminhar pelos seus pés. Deixemos que a individuação de cada um se concretize, estando cá para o que for preciso (e possível) e vivamos também nós as nossas vidas, ao invés de viver a vida dos outros.

domingo, 13 de novembro de 2016

O Que Diz o Pânico



Tudo começa com uma sensação física de mal-estar, sintomas corporais que variam entre palpitações, tremores, sudação, vertigens, sensação de desmaio, dificuldades respiratórias, sensação de adormecimento ou formigueiros, dores físicas ou pontadas, medo de morrer ou de enlouquecer. Nesse primeiro episódio, o mal-estar parece crescer descontroladamente e o susto é grande. Às vezes, resolve-se por si só, outras vezes, o episódio termina mesmo no hospital, para onde a pessoa corre cheia de medo e onde os técnicos de saúde lhe comunicam, para seu espanto, que não tem nada. É "apenas" ansiedade.
Esta é a história comum à maioria das pessoas que já vivenciaram um ataque de pânico. Em seguida, o que acontece vulgarmente é que a pessoa passa a fugir dos estímulos que associa a esse mal-estar: se estava no carro, pode deixar de conduzir; se estava na escola, pode deixar de ir à escola; se estava no estádio, pode deixar de ir à bola. Desenvolve-se uma reação fóbica. Mas a crise pode repetir-se, noutras circunstâncias. E uma nova situação pode tornar-se um novo estímulo fóbico: desta vez pode acontecer num elevador e a pessoa vai deixar de andar de elevador (ou passar a andar nele com muito medo). Quando começam a dar-se vários episódios, a vida pode ficar seriamente limitada. Nasce um medo incontrolável de estar em locais onde se possa sofrer novos ataques de pânico e de onde a fuga possa ser difícil ou demorada, conduzindo não só ao já mencionado evitamento fóbico dos mesmos, como também ao isolamento social e retirada para lugares sentidos como seguros. E o medo do medo irá “comer-nos” por dentro.
O problema é que não podemos fugir de nós mesmos, e é dentro de nós que tudo acontece. O problema não está no carro, nem na escola, nem no estádio de futebol, nem no elevador está nas nossas emoções. Tal como uma febre, os ataques de pânico não são uma doença, são um sintoma. Indicam-nos que alguma coisa dentro de nós está mal. O pânico surge quando as doses de ansiedade se tornam insuportáveis, ainda que não tenhamos consciência dela. É um conflito emocional escondido que é preciso compreender e resolver, dotando a pessoa das ferramentas necessárias para seguir o seu caminho.
            As crises de pânico não têm de ser aguentadas estoicamente. E a medicação por si só, é insuficiente e até contraproducente, se não for acompanhada de uma terapia pela palavra, que leve o sujeito a olhar para dentro e a ver aquilo que está lá e não vê. O pânico é um sintoma que fala. O pânico é, ao contrário do que se possa pensar, um sintoma de vida. É sinal de que o sujeito está emocionalmente desperto e que precisa resolver qualquer coisa dentro de si, embora não esteja capaz. O pânico não é para se calar nem para se adormecer, é para se escutar com atenção e traduzir, sem demora, o seu significado.  

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

O Egocentrismo Necessário (E O Desnecessário)

O egocentrismo é a característica de uma personalidade que pensa e sente que tudo gira ao seu redor. O indivíduo egocêntrico é aquele que prioriza os seus pensamentos, desejos e necessidades sobre os de todos os outros, incluindo, tantas vezes, os dos próprios filhos. Ele, primeiro que todos os outros, deve estar bem.
Assim, o egocentrismo exacerbado dificulta a capacidade fundamental de colocarmo-nos no lugar do outro, entrando em rota de colisão com a empatia (que é precisamente a capacidade de perceber o que o outro está a sentir). Na presença predominante do egocentrismo, só me percebo a mim: por exemplo, sinto que fui magoado, fui ignorado, fui contrariado ou negligenciado, mas não me importa o que o outro está a sentir nem reflito sobre a minha responsabilidade na situação. O indivíduo maioritariamente egocêntrico tem muita dificuldade em descentrar-se de si mesmo e de abdicar da sua vontade ou necessidade. Quando o faz, normalmente, cobra. Tudo o que dá de si fica “registado” pois é com sacrifício que o faz, considerando-se por isso em défice e colocando o outro em dívida para com ele.
Os peritos em egocentrismo são, por excelência, as crianças. No geral, pensam-se o centro do mundo — têm uma dificuldade natural em entender que as coisas nem sempre são como pensam nem funcionam à sua maneira. Depois, são as experiências da vida que, principalmente a partir dos 3 anos, permitirão gradualmente o reconhecimento e validação dos outros: os que são diferentes, os que brincam diferente, os que querem coisas diferentes. Porém, é importante que as crianças tenham passado pela fase egocêntrica; é importante serem e sentirem-se, por uns momentos, o centro. É o que acontece quando o bebé sente o encantamento amoroso da mãe e quando as famílias se organizam em função dos seus bebés e das suas necessidades. Só aos poucos, à medida que estes se vão autonomizando devagarinho, é possível ir introduzindo pequenas separações ou compassos de espera, frustrações naturais do quotidiano que facilitam essa passagem.
Casos há em que, por nunca terem sido o centro de nada, se tornam adultos ciosos de ser o centro de tudo, focando-se em si porque nunca antes puderam ser verdadeiramente importantes. Outros, inversamente, cresceram em ambientes em que esse egocentrismo nunca foi desmontado, tendo as famílias continuado a girar sempre em torno da criança, ou mesmo do jovem Assim, consoante as circunstâncias do nosso crescimento, permanecem no adulto doses diferentes deste egocentrismo primordial. Uns crescem com cada vez maior capacidade de se descentrar de si próprios, convivendo com facilidade com a existência dos outros e dançando flexivelmente entre todos. Outros ficarão tão focados em si mesmos que não têm espaço para as necessidades e desejos de mais ninguém. E cheios de si, permanecem, tristemente, sós.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

A Banalidade do Mal



Surgem, aqui e acolá, certos radicalismos. Surgem, aqui e acolá, certos nacionalismos. Não precisamos olhar para muito longe na história para saber que este é um assunto que merece muita discussão e reflexão nas sociedades. Afinal de contas, o que parece é que as massas caem nestas armadilhas sem perceber muito bem como.
Hannah Arendt foi uma filósofa política alemã que se debruçou sobre o estudo das origens do totalitarismo e que criou um conceito extremamente interessante, a “banalidade do mal”. Tendo assistido ao julgamento de Adolf Otto Eichmann, responsável pela logística do extermínio de milhões de pessoas no final da II Guerra Mundial durante a chamada “solução final”, Arendt concluiu nos seus artigos que Eichmann não tinha quaisquer motivos criminosos nas suas acções era um homem assustadoramente banal, um burocrata medíocre que justificou todos os seus comportamentos com o cumprimento de ordens superiores. Uma máquina executante, que jamais reflectiu sobre o significado das suas acções, sem livre arbítrio ou capacidade crítica. Não foi a maldade extrema que conduziu os comboios para Auschwitz, não foram monstros cheios de ódio ou racismo que comandaram as operações no terreno: foram funcionários competentes de uma burocracia estatal, em modo de obediência cega.
A “banalidade do mal” está, então, ao alcance de cada um de nós, a partir do momento em que nos demitimos de questionar a realidade que se desenvolve em nosso redor e aquilo que é exigido de nós no seio de uma sociedade. Nesse sentido, Arendt usou várias vezes a expressão “thoughtlessness” (ausência de pensamento; acriticismo) para se referir ao que está na origem da “banalidade do mal” — não são pessoas diabólicas que cumprem ordens diabólicas; para cumprir ordens, sejam elas quais forem, basta absterem-se de pensar sobre isso.
Toca-se aqui o fenómeno do conformismo e da obediência à autoridade. O conformismo é a tendência para seguir as massas dominantes. A maioria dos indivíduos prefere dizer “amén” (e fazer parte de qualquer coisa) do que afastar-se ou colocar-se contra as ideias vigentes. É, digamos, mais confortável. A obediência à autoridade é outra característica muito humana, conforme demonstrou Milgram nos seus estudos, quando verificou que 65% dos indivíduos em análise seguiam cegamente a ordem superior de executar choques elétricos de intensidade crescente ao próximo, independentemente do que viam acontecer à sua frente.
A lealdade burra e acrítica conduz a catástrofes, aponta Arendt, que soube bem destacar o quão demencial foi o quadro social de massas enfeitiçadas por um führer. Em tempos de radicalismos e novos nacionalismos, desde o Reino Unido à América, é por demais importante lembrar isto. 

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Vínculos


Nos anos 50, John Bowlby efetuou um trabalho muito importante no estudo das ligações humanas, desenvolvendo a Teoria da Vinculação. Mais tarde, durante a década de 70, Mary Ainsworth expandiu o trabalho de Bowlby, estudando as reações a uma separação curta entre crianças (dos 12-18 meses ) e suas mães, e relacionando essas reações com o tipo de ligação existente entre ambos. Abstraíram-se desta experiência três tipos básicos de vinculação bebé-mãe e suas consequências.
Então, o mais adaptativo tem o nome de vinculação segura, um estilo relacional em que a criança se relaciona com a mãe com segurança (e vice-versa), e com essa confiança mútua a criança torna-se capaz de explorar o meio ativamente. Chora pouco na presença da mãe mas nos momentos de separação mostra-se naturalmente perturbada (e não é reconfortada por outras pessoas). Nos reencontros com a mãe, a criança saúda-a efusivamente e procura o contacto com ela. Existe equilíbrio entre os comportamentos de ligação à mãe e de exploração do mundo envolvente. Depois, há a vinculação insegura ambivalente, em que a criança permanece muito juntinho da mãe, aparenta ansiedade e explora pouco o meio envolvente. Nos momentos de separação mostra-se muito perturbada e nos reencontros com a mãe o comportamento da criança pode alternar entre tentativas de contacto e sinais de rejeição (empurrar, pontapés). Após esse reencontro a criança fica vigilante e talvez se aproxime ainda mais, logo, os comportamentos de vinculação predominam face aos comportamentos exploratórios. Por último, a vinculação insegura evitante, onde a criança, defensivamente, “faz de conta que não se importa”. Permanece mais ou menos indiferente quanto à proximidade da mãe e entrega-se à exploração do meio. Na ausência da mãe a criança pode chorar ou não, e nos reencontros desvia o olhar e evita o contacto com ela. Os comportamentos exploratórios prevalecem face aos comportamentos de vinculação. Mais tarde veio a acrescentar-se um quarto tipo, vinculação desorganizada, em que o comportamento da criança é confuso e parece não ter um objetivo claro ou explicação.
O tipo de vinculação que se estabelece entre uma criança e a figura materna é um fenómeno complexo mas realçam-se, como fatores facilitadores de uma vinculação segura: a disponibilidade emocional para esse encontro amoroso, empático, intuindo e respondendo adequadamente às necessidades afetivas do bebé, i.e., estar com ele psicologicamente, mesmo no sofrimento, ir dando voz às suas sensações e aguardando em conjunto o fim do mal-estar; destaca-se a importância da previsibilidade, i.e., de a criança saber com o que pode contar por parte da mãe; destaca-se a importância do toque, da forma segura e amorosa como se pega o bebé, bem como o respeito de o deixar estar quando ele de nada precisa. Uma vinculação segura na infância será atualizada pela vida fora, providenciando relações saudáveis, com base na confiabilidade, que nos permitem viver com o outro e ao mesmo tempo partir à descoberta de nós e do mundo.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Em Fuga


Quando pressentimos que dentro de nós existe um buraco temos medo de cair nele. Chamemos-lhe “o lado depressivo da personalidade”, um lugar escuro e triste, que nem sempre conseguimos justificar logicamente mas que nos suga a energia e nos deixa num estado de espírito terrível, por vezes até incapazes de reagir, de viver. O medo da depressão existe em todos nós, desde que em algum momento conhecemos de perto estados de desânimo profundo e conseguimos fantasiar o que será viver nesse lugar.
O medo da depressão (ou dos estados mais depressivos) leva-nos tantas vezes a uma fuga para a frente: viajando, trabalhando ou exercitando o corpo de forma compulsiva, ou de forma mais perigosa, pelo abuso de substâncias (drogas, álcool), sexualidade exacerbada, compulsão alimentar, etc. Esses caminhos por onde o medo nos conduz não representam necessariamente escolhas conscientes, ou seja, é quase automático este gesto de evitamento da dor interna e consequente busca do prazer, ainda que efémero ou ilusório. O medo da depressão é o medo de um buraco sem fundo. Mas fugir, evitar, ou negar esse buraco é mais prejudicial do que cair nele, e mesmo batendo de rabo no chão (pois ele tem, sim, fundo) explorá-lo e encontrar maneira de sair ou de viver com ele.
Fugimos da depressão, dor da perda, quando, por exemplo, depois de um divórcio nos negamos a chorar ou a encontrar-nos a sós com a nossa solidão e entramos imediatamente numa nova relação. Fugimos tantas vezes quando nos morre alguém chegado; a dor é funda e temos medo, não queremos senti-la. Fugimos quando não conseguimos estar parados ou sozinhos, evitando ficar a sós com a nossa cabeça. Os casos serão infinitos mas não é preciso um evento externo ou uma causa lógica para sentirmos a presença silenciosa de um qualquer sofrimento. Talvez o maior medo surja mesmo das dores cujas origens não identificamos; daquele sofrimento ou insatisfação permanente que nem entendemos bem de onde vem mas que está lá, à espera que olhemos para ele. Fugimos dessa dor desconhecida, cujas raízes são, frequentemente, antigas e profundas, vivendo refugiados em estratégias que nos permitem andar para a frente, mas sem a coragem de querer perceber o que é isso que nos come por dentro.
Porém, as emoções mais difíceis estão à espreita, e querendo nós olhar ou não para elas, elas olharão para nós. Fitam-nos, particularmente nas horas mais escuras, e talvez seja necessário olhar para elas de frente, e perguntar-lhes “quem és tu e o que queres de mim?”. O conhecimento pode ser assustador, mas o desconhecido é mais. O conhecimento é um processo muito poderoso, porque o medo da dor é sempre pior que a dor em si. O medo vive da imaginação e não tem fim; a dor vive do real e quanto mais intimamente a conhecermos, melhor viveremos com ela, ou apesar dela.  

sexta-feira, 22 de julho de 2016

O Estranho e o Medo


Eis o estranho e o medo, tão mal amados. Porém, sem o estranho e sem o medo, permanecemos na repetição do familiar — do que já conhecemos, do que já sabemos, do que nos mantêm confortáveis. Conforto é seguro, é gostoso e é preciso; mas é o desconforto que nos ensina tudo o resto. Tudo o que não conhecemos, tudo o que não sabemos, tudo o que pode, um dia, deixar-nos igualmente confortáveis, mas de outra maneira: nova. E é o novo que nos acrescenta. Vamos abrir os braços ao estranho, vamos olhar de frente o medo, e descobrir o que acontece depois.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Co-Dependência


A uma, conheci-a após o falecimento do marido. Tinha passado vinte anos a cuidar dele, um alcoólico em espiral destrutiva despindo-o quando não era capaz, deitando-o, ou até levantando-o do chão, com a força que não tinha. A outra, conheci-lhe a história de outra maneira; conta ela que sempre viveu para a mãe mulher deprimida, cocainómana, fazendo vigílias à sua cabeceira nos dias em que esta não saía da cama ou indo buscar o “produto” quando era necessário.
Há milhares de histórias assim. São histórias de pessoas cuja vida gira não em torno de si e dos seus sonhos mas em torno da disfuncionalidade de um outro. Pode parecer preocupação ou altruísmo, mas quando nos destrói a possibilidade de viver a nossa vida, é preciso parar: o que muitas vezes não acontece. Há ligações em que não há limites, nem dum lado, nem do outro. Então, há quem chame, a este funcionamento, a co-dependência, isto é, estar emocionalmente dependente (no sentido de excessivamente ligado) desse outro.
É frequente acontecer em famílias em que um dos elementos tem consumos de substâncias (drogas ou álcool); aí, o indivíduo co-dependente emerge como o responsável pela “salvação” do seu outro significativo, o que tantas vezes se revela uma expectativa pouco realista ao longo do tempo. Mas a co-dependência não aparece apenas em torno do abuso de substâncias químicas. Por exemplo, se um dos meus pais é infantil, irresponsável, gasta todo o dinheiro que ganha, e eu sinto que tenho que tomar conta dele, controlar os seus passos, salvá-lo de si mesmo isso é ser co-dependente. Se o meu companheiro está permanentemente insatisfeito e infeliz e eu vivo para tentar animá-lo ou gratificá-lo, isso é co-dependência. No fundo, é deixar que a vida do outro se torne a minha vida, que o problema do outro se torne o meu problema e, muitas vezes, sem que a pessoa em questão faça alguma coisa para o resolver.
De uma forma geral, podemos enumerar assim os pontos-chave da problemática da co-dependência (ou dependência afectiva): a) Sentir-se responsável por outras pessoas – pelos sentimentos, pensamentos, acções, escolhas, desejos, necessidades, bem-estar, e até pelo seu destino; b) Sentir ansiedade, pena e culpa quando a outra pessoa tem um problema; c) Sentir-se compelido – quase forçado – a ajudar a resolver o problema; d) Ter raiva quando a nossa ajuda não é eficiente; e) Comprometer-se demais; f) Culpar o outro pela situação em que estamos; g) Achar que a outra pessoa está a levar-nos à loucura; h) Sentir raiva, sentir-se vítima, como se não tivesse liberdade de escolha.
Claro está que nem todas as forma de apoio e compreensão ­­­são problemáticas, porém, é preciso perceber se nos tornámos os principais responsáveis por quem não quer tomar conta de si mesmo. Esse é um lugar de grande sofrimento e que também não ajuda a resolver o comportamento patológico da pessoa-problema.

segunda-feira, 27 de junho de 2016

O Que Arde, Cura


Lembro-me de cair muito ao chão em pequena. Lembro-me do ardor dos curativos na ferida e de ouvir, variadíssimas vezes, que “o que arde, cura”. O curioso é que, anos depois, entendemos que este dizer tem um significado muito vasto. De facto, não há cura sem dor, quer no plano físico, quer no emocional. Os processos de cicatrização e regeneração, sejam que que ordem forem, são sempre processos difíceis, na sua generalidade. É a coragem de enfrentar essas dores que permite a cura. Porém, o medo é muitas vezes maior que a coragem. Temos medo de sofrer. Na melhor das hipóteses, é um estado desconfortável. Na pior, insuportável. 
O problema é que, se fugimos da dor, fugimos de nós. Depois da morte do seu pai, Simba estava só e triste com a sua dor e a sua culpa quando conhece Timon e Pumba, em O Rei Leão, que rapidamente o ensinam a viver segundo o lema “Hakuna Matata”, que significa “atira o passado para trás das costas”. E este assim o faz durante um tempo, esquecendo os problemas, saboreando a festa de viver livre na selva, longe da realidade que lhe causou tanta dor. Mas, na verdade, Simba só se sente inteiro quando regressa ao lugar da sua dor para reviver e resolver a situação difícil que a vida lhe apresentou. Assim, “atirar o passado para trás das costas” só é possível depois de olhar para ele de frente, e de resolvê-lo externa e internamente. Só aí, mais sarados, podemos arrumar devidamente o passado dentro de nós.
Carl Jung disse-nos, em A Prática da Psicoterapia, que não há despertar de consciência sem dor mas que “as pessoas farão de tudo, chegando aos limites do absurdo para evitar enfrentar a sua própria alma.” É o medo e o desconforto que nos faz fugir: de chorar, de recordar, de sentir (raiva, tristeza, frustração). O medo de reviver emoções difíceis. Para quê lá voltar? Por estranho que pareça, é preciso. É preciso lá voltar as vezes que forem necessárias. Sabendo, porém, que de cada vez que voltamos a dor é menor. Ficaremos cada vez mais fortes e cada vez mais sabedores de que essa dor não nos destrói. E se a dor é assustadora demais, podemos voltar acompanhados. Seja por um terapeuta, um familiar ou um amigo: que seja alguém que nos pegue pela mão e nos ajude a percorrer essa escuridão dentro de nós, até que o caminho não seja mais assustador. Simba também não foi sozinho.
O processo de cura passa também pela dor. O que muitas vezes não sabemos é que, depois da dor, está a liberdade, a plenitude, a inteireza. Já dizia Luís de Camões “Quem quer passar além do Bojador/ Tem de passar além da dor”. Descobrir-nos-emos, na manhã seguinte, cada vez mais fortes, mais integrados e mais competentes para enfrentar os nossos Adamastores.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Contas à Vida


A vida vai em crescendo. Primeiro é-se nada. Depois é-se um. Depois é-se dois. Depois é-se três.
Primeiro é-se nada e o mundo gira sem nós. Pessoas, terras e animais existem sem sequer imaginar que um dia chegaremos. Quando cá chegamos, já milhões de eventos se passaram, milhões de vidas se viveram, milhões de histórias se contaram. Guerras, catástrofes, amores, descobertas; o mundo é imenso sem nós. Porém, cá estamos. Fazemos parte. É-se um em muitos.
É-se um e para ser-se um, é preciso saber estar só (mesmo na presença do outro). Saber estar só é saber ser ímpar: sentir-se uno, sentir unidade e coesão interna. A construção da individualidade é condição primária para o resto da nossa vida. Vai-se fazendo aos poucos, desde o nascimento, num processo cheio de avanços e retrocessos: quem somos, de onde vimos, para onde vamos, o que nos move, o que nos atormenta? Apesar de ser um caminho nosso, neste processo é fundamental ser-se apoiado: pelas relações mais próximas, pelos nossos cuidadores, pelo meio envolvente. Com demasiadas falhas em nosso redor, o caminho passará mais pela busca da sobrevivência do que pela busca de nós mesmos há prioridades. Mas se as coisas correm bem, se temos o que precisamos, podemos dedicar-nos com relativa tranquilidade à descoberta do nosso mundo interno, através da relação com os outros e com o mundo, através da brincadeira, através das aprendizagens e das experiências.
Então, quando se sabe ser ímpar, pode então ser-se par. É-se dois. O encontro com o outro é difícil mas será tanto mais fácil quanto mais soubermos quem somos. Ser-se dois implica saber respeitar a liberdade de cada um. Ser-se dois implica não nos perdermos de nós próprios ou fundirmo-nos com o outro. Ser-se dois é ser-se um mais um e nunca ser-se um só. O que liga o par é outra coisa, é a comunhão dos afectos e dos projectos, são os sonhos.
Quando o par já não chega e se transborda, é-se três. Ser-se três é uma circunstância que nasce desses sonhos partilhados numa relação que está viva e que, portanto, se expande. Ser-se três é ainda mais desafiante. Ser-se três é saber alternar entre todas estas posições: há momentos para ser-se um, há momentos para ser-se dois e outros em que se é três. E daqui em diante pode ser-se quatro, cinco, seis, sendo que entendido o processo as questões serão sempre semelhantes a partir daqui.
Depois, se acrescentarmos às contas as nossas restantes relações, podemos mesmo dizer que somos muitos. E se um dia nos encontrarmos pensando que no fim voltaremos a ser nada, lembremo-nos antes que depois de tanta construção e ligação seremos sempre dois, três, quatro, tantos quantos aqueles a quem tivermos deixado neste mundo um pouco de nós.

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Esta Coisa da Verdade


Verdades esperam-nos, serenamente, ao longo do caminho. Não têm a nossa urgência e por isso deixam-se estar, sabendo que tudo tem um tempo mesmo que esse tempo nos pareça fora de tempo. O nosso tempo é diferente do tempo do Universo. Não se sabe muito bem porquê mas é, quase sempre, assim. Pois então que tarde, mas que chegue, por fim, essa coisa da verdade. Outras vezes ela já se tinha mostrado, em sinais de fumo à beira da estrada, mas nós, distraidamente ou propositadamente, não vemos. Aí o problema da verdade já não é o tempo que ela demora mas sim a nossa dificuldade de olhar de frente para ela. Pois então que se olhe tarde, mas que se olhe, por fim, para essa coisa da verdade.
É que como dizia Thoreau, pensador do séc. XIX: Mais do que amor, do que dinheiro, do que fama, dêem-me a verdade”. E à semelhança de Thoreau, também a psicoterapia e a psicanálise (assim como outras disciplinas que abordam o desenvolvimento pessoal) colocam a verdade acima de todas as outras coisas. Se algo não assenta em verdade, não tem validade. De pouco nos serve um amor se este não é sincero: amor de aparências, amor conformado, exigido ou manipulado, não nos preenche, não nos satisfaz. De pouco nos serve dinheiro se não nos permite viver honestamente: se nos faz viver no medo ou na ilusão da nossa competência. De pouco nos serve a fama que não derive da autenticidade: se o reconhecimento nos chega através de uma falsidade, de uma artimanha ou “personagem”, sentiremos sempre o vazio dessa ficção, de uma história que não é nossa, e sentir-nos-emos sempre pouco amados na nossa essência.

Porém, a espécie humana prefere muitas vezes a superficialidade, preferindo mentiras confortáveis à profundeza da verdade. Mentiras confortáveis sobre a vida, sobre os outros e sobre nós mesmos. As verdades nem sempre nos confortam, pelo contrário, obrigam-nos a mexer: obrigam-nos a olhar as falhas, a trabalhar mais, a continuar à procura, a perder coisas e a seguir em frente. As verdades doem porque fazem crescer, mas se crescer dói, não crescer mata. Viver na mentira, principalmente a interna, mata a vida psíquica porque viver de forma não genuína é o mesmo que não viver, é simular uma vida. É no encontro connosco próprios, na nossa verdade, que se constrói o único caminho que nos realiza, e que assegura que um dia mais tarde, sintamos a paz de ter existido de forma real neste mundo. 

Uma Outra Definição Para o Amor


"Tenho uma vida terrivelmente monótona. Eu caço galinhas e os homens caçam-me a mim. As galinhas são todas parecidas umas com as outras e os homens são todos parecidos uns com os outros. Por isso, às vezes, aborreço-me muito. Mas, se tu me cativares, a minha vida fica cheia de sol. Fico a conhecer uns passos diferentes de todos os outros passos. Os outros passos fazem-me fugir para debaixo da terra. Os teus hão-de chamar-me para fora da toca, como uma música. E depois, repara! Estás a ver aqueles campos de trigo ali adiante? Eu não gosto de pão e, por isso, o trigo não me serve para nada. Os campos de trigo não me fazem lembrar nada. E é uma triste coisa! Mas os teus cabelos são da cor do ouro. Então, quando tu me tiveres cativado, vai ser maravilhoso! O trigo é dourado e há-de fazer-me lembrar de ti. E hei-de gostar do som do vento a bater no trigo." — in O Principezinho

terça-feira, 19 de abril de 2016

O Medo do Sucesso (Ou a Paz dos Perdedores)

Robert Montgomery

         No outro dia contavam-me que Fernando Mamede, atleta do Sporting Clube de Portugal, possuía enorme e reconhecido talento. Que apesar de todos os recordes internacionais por ele batidos no atletismo, não conseguiu vencer algumas barreiras psicológicas, medalhando apenas numa grande competição internacional. Contaram-me que um dos momentos mais dramáticos do seu percurso deu-se em 1984, nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, nem um mês depois do seu recorde mundial nos 10.000 metros. A pressão nos ombros de Fernando Mamede era enorme pois era já o grande favorito ao ouro olímpico, porém, a meio da corrida, o atleta abandonou a prova, para espanto de todos os que assistiam.
Mas se muitos ficaram espantados, certamente Sigmund Freud não ficaria. Uma das coisas que ele nos ensinou na sua vasta obra, através do estudo de pacientes neuróticos, é que os erros catastróficos e as explosões na vida particular normalmente não acontecem após um fracasso, mas sim após uma vitória. De facto, encontramos situações semelhantes não só no mundo da alta competição mas também no mundo empresarial, artístico e claro, na esfera relacional de cada um de nós. Há pessoas que parecem não suportar muito bem uma coisa fantástica: seja uma carreira fulgurante ou um casamento feliz. Porém, ninguém estraga o que fez ou trabalha contra si mesmo conscientemente. Com raízes inconscientes, o "medo do sucesso" associa-se geralmente a duas questões: ansiedade e/ou culpa.
O sentimento de culpa perante o sucesso, explicação que Freud mais explorou, pode ter raízes no fantasma do triunfo sobre os próprios pais, seja uma superação académica, financeira, romântica ou social. Pode até dar-se o caso de haver um medo inconsciente de retaliação, sob a forma de perda do amor, zanga ou inveja, preferindo o sujeito manter-se num nível “igual ou inferior” aos mesmos, evitando essa “competição”. Outra explicação para a culpa, também com raízes antigas, prender-se-á talvez com a baixa auto-estima, desvalorização pessoal e sentimento de desmerecimento. Como se um “sabotador interno” (citando Fairbain) nos impedisse de concretizar um feito por não nos acharmos dignos de tal.
Entre os factores explicativos para estes actos “auto-destrutivos” encontramos também a ansiedade: que nasce de uma sensação de insegurança, incapacidade ou medo do crescimento (no sentido de tudo o que é expansão). É a angústia de não estar à altura, é o querer ser sempre mais “pequenino”. É o medo de conseguir e depois perder. Toda a felicidade e/ou poder envolve tensão, riscos e responsabilidade. E muitos preferem a chamada "paz dos perdedores".


domingo, 3 de abril de 2016

O Valor das Coisas

 
Ilustração Michael Kirkham/ Heart


           Na era moderna iniciou reinado “Sua Majestade, Os Mercados” e, consequentemente, aquilo a que podemos chamar a mercantilização das coisas. A mercantilização deriva em grande parte da difusão do capitalismo global e da sua tendência para a quantificação/qualificação de tudo, o que acontece muitas vezes de forma redutora. E assim chegamos a uma questão importante: a disseminada confusão entre o preço e o valor das coisas.
Segundo a teoria económica, o preço de determinado bem resulta do confronto, no mercado, entre a sua procura por parte dos consumidores e a sua oferta por parte dos produtores.  Tem também que ver com o processo de concepção do produto mas é cada vez mais fundamentando no que o mercado “pensa” e “diz” que algo vale. O preço é ainda ditado pela moda, pelo marketing e pela publicidade. O preço é algo que é atribuído, a sua origem é externa, o que implica que nem sempre o preço de algo é equivalente ao seu valor.
Valor é um conceito diferente. Há coisas muitos valiosas que nem sequer têm preço e, inversamente, há coisas muito caras sem grande valor. Valor é outra coisa. Se o preço é ditado, o valor é intrínseco. O valor vem de dentro, é uma propriedade independente do exterior. O valor não está dependente de nada, está dissociado (ou deveria estar) dos mercados, das modas, da procura e da publicidade. É também uma característica bastante subjectiva: difere consoante o olhar de cada um.
          O olhar mercantilista da era moderna conduz, talvez, à confusão. Observamos que as pessoas vão sendo sucessivamente influenciadas pelo valor que o mercado atribui às coisas (preço) e não pelo valor intrínseco das mesmas. Ou seja, as pessoas vão perdendo a sua capacidade crítica, o seu livre arbítrio e mesmo a sua identidade, deixando de escolher (ou mesmo saber) o que querem e passando a escolher o que os mercados aprovam ou recomendam.
          Depois, e talvez mais grave, deu-se uma aplicação do mesmo raciocínio às próprias pessoas, num processo que Carlo Strenger chamou a “mercantilização do Eu”. É hoje possível dizer que muita da nossa angústia narcísica (qual é o meu valor?) talvez derive do facto de vermos pessoas procurar o seu “preço” ao invés do seu valor. Querem saber o valor que o “mercado” lhes atribui quantos amigos, que estatuto, quanto sucesso, que ordenado, quantos “gostos” quando na verdade, aquilo que nos permite gostar de nós é sabermos o nosso valor, i.e., sabermos quem somos e o que nos torna diferentes: diga o mundo o que disser, recomende-nos o que quiser, pague-nos o que pagar, goste de nós ou não. 

segunda-feira, 21 de março de 2016

quinta-feira, 17 de março de 2016

Reciprocidade



"Why does the lamb love Mary so?"
The eager children cry;
"Why, Mary loves the lamb, you know,"
The teacher did reply.

sábado, 5 de março de 2016

Beijos dão-se a quem os quer

The Kiss, 1891, Mary Cassat

Chegou ao pé de mim e baixei-me para lhe dar um beijinho, ao que ele não correspondeu. Aliás, encolheu-se, parecia incomodado. Mais tarde, a sós, perguntei-lhe se gostava de beijinhos. Disse-me que não. Desde então, cumprimento-o com um olá e um sorriso. Beijos só se dão a quem os quer.
Embora muitos miúdos gostem de beijinhos e abraços, uma outra parte das crianças não gosta de ser tocada como forma de cumprimento. Entre adultos, e particularmente em Portugal, generalizou-se este cumprimento, mais informal. Mas não é por acaso que em muitas culturas o beijinho só é bem recebido a partir de um determinado grau de intimidade. “Dá um beijinho à tia Maria”, ordenam-lhe os pais, quando chega aquela mulher estranha, que nunca viu na sua vida. Que raio, mas porquê? “É uma questão de boa educação”, respondem-lhe. Mas onde está escrito que a boa educação implica distribuir beijos quando não nos apetece? O beijo forçado é um gesto extremamente intrusivo. O corpo é da criança, não é de mais ninguém.
Quando uma criança demonstra claramente não gostar de dar ou receber beijos ou abraços é suposto haver respeito. Para que ela saiba que tem o direito de escolher quem a abraça, quem a beija e quem a toca. Para que aprenda que o seu corpo não tem de servir as convenções ou o interesse alheio. Quando expomos  uma criança a estes abusos estamos a passar a perigosa e errada mensagem que a criança “boazinha” e “bonita” é aquela que se permite ser tocada, aquela que expressa educação e simpatia através do contacto corporal; que a criança “boazinha” e “bonita” e, consequentemente, aceite e aprovada pelos outros, é aquela que não coloca limites sobre seu próprio corpo. O desrespeito surge também sob a forma de chantagem emocional: “Não gostas de mim?”, perguntam. Estão a confundir tudo, o afecto não se mede aos beijos. E se a pessoa está carente de beijos, pode sempre arranjar um namorado.
Ainda que seja com a melhor das intenções, obrigar uma criança a dar um beijo é violento. Que responda, que cumprimente, sim. Beijar ou abraçar, no interesse de quem? Se a criança quiser dar beijinho, dará. Se a criança diz que não quer, que não lhe apetece, ou simplesmente vira a cara, não o levemos a peito. A criança tem direito ao seu espaço, à sua intimidade e ao controlo do seu corpo. O corpo de uma criança tem de ser tratado com muito respeito. Embora ela precise de nós na relação com ele (tomar banho, vestir-se) se ela começa a colocar limites (querer tomar banho sozinha, querer vestir sozinha, não querer ser abraçada) há que começar a pensar sobre isso. No que respeita à nossa intimidade, “não” significa “não”, em qualquer idade. E só se nos respeitarem poderemos também aprender a respeitar o outro.

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Quando dói

Memory (The Heart) - Frida Kahlo
Há muitos anos atrás visitei uma exposição interactiva chamada “Bom dia medo!”. À entrada, todos os meninos escolhiam e sinalizavam, de entre vários, qual o seu maior medo. Entre as opções encontravam-se o medo do escuro, o medo dos animais ou o medo dos desconhecidos mas recordo-me de constatar que quase todas as crianças escolhiam o medo da dor.  
Numa fase precoce do entendimento, tememos mais a dor física (as quedas e trambolhões, as feridas, as vacinas) mas mais tarde, percebemos com facilidade que há outras dores mais terríveis: as dores da alma. Hoje sabemos que toda a dor se processa no cérebro, seja lá de que origem for. Mas é noutro lado que se sente: ninguém quer sofrer cá dentro, no coração. 
O fenómeno da dor (ou das várias formas de se sentir dor) é algo muito complexo: onde uns a sentem, outros não sentem nada, e o que representa dor para uns é diferente do que representa dor para outros. Coisas que antes doíam, deixam de doer. Coisas que nunca doeram, passam a doer. A dor é uma percepção plástica e móvel, que se altera e migra no espaço e no tempo. A dor é também um sintoma: a dor fala sobre muitas coisas. Uma dor de cabeça pode falar de ansiedade, uma dor de barriga pode falar-nos de medo, uma dor nas pernas pode falar-nos de dificuldades no processo de autonomia, entre outras situações. Em boa verdade, sentimos medo da dor física mas aquilo que nos marca é a correspondente dor mental.
Como se não bastasse, não só tememos a dor-em-si como tememos a hipótese de a sentir. Essa mesma antecipação da dor, já causa, em certa medida, sofrimento. Chamamos-lhe angústia, mas a angústia também “dói”. Corrói por dentro, torce-nos as entranhas, tira-nos o sono, a fome, a paz. Ou seja, há o medo da dor mas há também a dor do medo. O medo nasce cedo porque cedo se sabe que muita coisa, no nosso existir, dói. As experiências da dor são inevitáveis. Muitas surpreendem-nos logo dentro da barriga da mãe: desconfortos vários, de maior ou menor intensidade, que a cada sensação rapidamente nos condicionam a não experienciar aquilo mais nenhuma vez. Mas ela regressa sempre, de todas as maneiras. Em desconfortos, outros. Em desencontros, muitos, entre o nosso sentir e o sentir dos outros, pelas perdas sucessivas que vamos acumulando, pelas doenças do corpo e pelos males da alma, há demasiada coisa que dói e é disso que fugimos.
Talvez a melhor forma de lidar com a dor seja, em primeiro lugar, parar de fugir: aceitá-la. É preciso aceitar a dor. É preciso aceitar que ela faz parte da vida: da nossa e da dos outros. É na aceitação da dor que o caminho se torna mais fácil. A vida vai doer, não nos iludamos — coragem. Que isso não nos impeça, jamais, de viver. A vida vai doer mas há outra coisa que sabemos: à partida, nada dói para sempre. Tudo passa. E é nessa certeza que encontramos o conforto necessário para não morrermos de medo todos os dias. Venha o que vier, venha a pior tempestade, haverá sempre de seguida, uma bonança. É desse agridoce que surgem as melhores histórias, os melhores contos, os melhores poemas. 


domingo, 31 de janeiro de 2016

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Intervalo de Vinte Minutos Para Sonhar



 Passados quinze anos da entrada no séc. XXI, desenham-se com maior nitidez aqueles que são os grandes desafios e paradoxos da actualidade: olhamos cada vez mais atentamente as questões dos direitos humanos mas somos reféns de um mundo extremamente orientado para o dinheiro; intuímos que essa sociedade “devoradora” em grande parte nos conduziu a uma dívida que é hoje dona e senhora de nós mas não encontramos caminho fácil para consumir menos e/ou produzir mais; tentamos não esquecer de que somos uma espécie gregária enquanto nos debatemos com um isolamento tecnológico cada vez mais refinado; apregoamos a tolerância mas sentimos uma violência latente em pensamentos, palavras e actos em nosso redor (e por isso queremos abrir os braços a quem precise mas receamos abraçar um agressor).
Perante a força esmagadora desses desafios do mundo concreto, não podemos perder de vista a importância de um espaço que nos ajude a pensar e a sonhar. Esse espaço cria-se, nas sociedades, através das artes, da cultura e da educação — universo sensível. Esse universo sensível é também algo que liga as pessoas, na medida em que está muito enraizado na tradição europeia e é, de certa forma, uma identidade: pertencemos a um continente-berço de pensadores e de fortes movimentos artísticos e culturais. É também uma força: em tempos de fractura, tudo o que promova a coesão e a integração é de preservar.
Embora o nosso país seja hoje mais alfabetizado do que há muitos anos atrás e o acesso às artes e à cultura seja hoje feito sem censuras ou grandes limitações, há uma espécie de anestesia generalizada no que trata a políticas de apoio e crescimento nestas áreas. E um país que não investe na arte e na cultura é um país que embrutecerá rapidamente. Ali não frutificarão novas ideias, pois a criatividade é abortada à nascença, com os habitantes adormecidos entre extratos bancários e folhas de cálculo. O ser humano não vive só de números mas também de sonho. É fácil cair na tentação de colocar as artes e a cultura num plano secundário: o que importa é pagar as contas e ter comida na mesa. Porém, se não se despertam os sentidos, a alma definha. As artes e a cultura são o alimento do espírito de um povo: para além da possibilidade de se maravilhar, é nesse espaço de sonho que podem surgir pensamentos críticos. É, como diria Raul Brandão, um “intervalo de vinte minutos para sonhar”.
As artes e a cultura, seja sob a forma de música, de pintura, de literatura, de cinema, de teatro ou de qualquer outra manifestação de criatividade, são porta de entrada do pensamento divergente, e assim o mundo “pulula e avança”. Ao mesmo tempo, permite um certo encantamento que nos distrai da realidade, por vezes tão dura. Sobre isso já Nietzsche dizia que “temos a arte para não morrer da verdade”. De facto, lemos as notícias ou ouvimos os telejornais e somos imediatamente sufocados com doses maciças de realidade. Não precisamos nem devemos fugir da realidade, ou seja, não se trata de oferecer “circo e bolos para enganar os tolos”, trata-se sim de reservar espaço na nossa mente para aquilo que é belo: seja lá o que isso for para cada um de nós.