terça-feira, 23 de junho de 2015

Conformismo, Acomodações e Outras Histórias

I)
“Conformei-me”, disse-me.
Quando o conheci, parecia condenado. No rosto, a ausência de esperança, na alma, a incapacidade de se afirmar senhor do seu destino. Como mente bem, o Homem. Como se engana a si mesmo. Como se defende e se justifica perante si próprio, como se ilude e finta o julgamento que faz de si todas as noites. Como tenta não se olhar de frente no espelho quando receia reconhecer ali os seus medos e incapacidades. Como quer esconder da sua alma que não foi capaz de lutar por ela. Dói, o remorso. Dói, a impotência. Dói, o medo. Mas, no íntimo mais íntimo de nós, sabemos.
Conformaste-te ou tens medo?
Tenho medo. Eu tentei mas era sempre tão difícil. Fui desistindo. Eu sonhava mas deixei de sonhar. Conformei-me.
O medo fez com que te conformasses e por te conformares abriste caminho ao medo. O medo come tudo. Foi precisamente isso que te enfraqueceu. A incapacidade de “continuar a ser”.
Por cada momento em que nos falha a possibilidade de “ser” ou a coragem de “continuar a ser” matamos um pedaço de nós. Ficamos mais frágeis e mais perdidos a cada “derrota” percebida. E a cada batalha que recuamos, sabemos menos quem somos.

II)
“Não sei porque me acomodei, disse-me.
A história repete-se. Quando a conheci era uma mulher, sobretudo, confusa. Não tinha ainda consciência de que tinha deixado, há demasiado tempo, de ser feliz.
Tu sentias mas acho que só agora consegues pensar sobre isso.
Sim, eu já sabia. Eu sentia-me só mas não quis ver. E isso deixa-me zangada. Comigo.
Por cada pensamento reprimido, por cada discussão adiada, por cada zanga amordaçada, por cada grito silenciado, é um pedaço de ti que matas. Foi precisamente isso que te enfraqueceu. A incapacidade de “continuar a ser”.

III) 
Duas vidas. Várias vidas. O mesmo dia. O mesmo medo. O medo de se permitir ser pessoa inteira. Como se faz? Por onde se vai? Então lembro-me do Alexandre O’Neill, que sabia destas coisas do medo, companheiro da condição humana, e contava, em parte, assim:

(…)
Ah o medo vai ter tudo  
tudo 
(Penso no que o medo vai ter  
e tenho medo  
que é justamente  
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo  
quase tudo  
e cada um por seu caminho  
havemos todos de chegar  
quase todos  
a ratos (…)

IV) Ou não.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Coisas Bonitas


Deixa-me fazer-te cócegas. Deixa-me fazer-te rir. Deixa-me falar-te das coisas bonitas que passam despercebidas. Deixa-me fazer-te sorrir no dia mais triste. Vem dançar comigo. Deixa-me aquecer-te os recantos gelados onde o sol nunca entrou. Falo-te da alegria de estarmos aqui no mundo ao mesmo tempo. Podíamos nunca nos ter encontrado, já pensaste nisso? E agora, já sorris? Falo-te da graça escondida nas cabeçadas que damos todos os dias aqui neste lugar onde nos enfiaram. É tão tristemente engraçado. Falo-te da sublime arte de rir e chorar ao mesmo tempo. Falo-te também da curta gargalhada dos momentos simples e ligeiros. Vá, deixa-me fazer-te cócegas. Deixa-me fazer-te rir. Deixa-me fazer-te bem.

sábado, 13 de junho de 2015

A pergunta do eterno retorno





      Se pudéssemos repetir a nossa vida tal e qual como ela se desenrolou até hoje, desejaríamos fazê-lo? O sábio Zaratustra, de Nietzsche, vai mais além, e pergunta: “E se um dia ou uma noite um demónio fosse atrás de ti até à tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há-de retornar.” Que sentiríamos?
A ideia de repetir ciclicamente a mesma vida, passando por tudo da mesma exacta maneira, pode funcionar como um exercício importante para questionarmos a direcção e o sentido que temos dado à nossa aparentemente curta existência. Embora uma existência em loop seja, por si só, assustadora, a melhor hipótese seria fazer dela o mais agradável possível. Então, se fosse garantido o nosso eterno regresso, exactamente nos mesmos moldes que na actualidade, até onde estaríamos dispostos a mudar coisas por forma a assegurarmo-nos de uma eternidade feliz? É importante ir questionando se o nosso percurso tem sido fundamentalmente prazeroso ou se é, pelo contrário, insatisfatório, ou mesmo terrível. Quantos de nós amam a sua vida? Ao fazer este balanço, o propósito não é mergulharmos em lamentações quanto ao que já passou mas sim dirigir o olhar para o que ainda pode vir. Amar o seu destino ou, mais adequadamente, criar um destino que sejamos capazes de amar.
Porém, nenhuma transformação positiva pode ter lugar se vivermos exclusivamente agarrados à ideia de que a nossa vida é como é por forças exteriores a nós: azar, má sorte, karma, sina, fado ou destino. A pergunta de Zaratustra obriga-nos a olhar a forma como pensamos as responsabilidades. Percebemos que o perigo de depositar a responsabilidade da nossa caminhada (e/ou da nossa insatisfação) no universo ou em qualquer outro exterior a nós mesmos, é que a situação poderá não sair do impasse. Então, se o demónio de Zaratustra nos condenasse, hoje, ao eterno retorno, continuaríamos no mesmo exacto lugar, estado e formato em que nos encontramos? Sentiríamos contentamento e satisfação em regressar à nossa existência assim como a temos conduzido? Ou seria um sufoco? E se assim for, seríamos passivos ou activos? Quanto tempo mais permaneceríamos no mesmo lugar? Até quando ficaríamos à espera? Até onde aguentaríamos? E se, efectivamente, nada acontecer? Nenhum milagre, nenhuma reviravolta fácil, nenhum chamamento ou insight? E se só nós somos responsáveis pela vida que levamos e pelos pilares que a sustentam? Transformaríamos a nossa vida, perseguindo sonhos, concretizando projectos, assumindo desejos? A liberdade de escolher fazê-lo é nossa. E a responsabilidade de escolher não o fazer, também.
É desconfortável pensar estas questões. É duro sentir este peso da hipótese mais certa: em última análise, os agentes da nossa felicidade e infelicidade somos nós. Que terrível sermos o nosso próprio carrasco. Sim, é desconfortável, mas é, garantidamente, o caminho possível nisto que é o curso da nossa vida. Sem essa consciência, mínima, talvez passemos o tempo que nos sobra à espera de algum milagre. Pode chegar. Ou não. Entretanto, é importante irmos aferindo o que se passa cá dentro. É preciso ouvirmo-nos a nós mesmos, escutar a voz que às vezes soa baixinho e que tantas vezes ignoramos (escondidos na ideia de que não há volta a dar ou no medo de tudo e mais alguma coisa) para que, caso o dito demónio nos obrigue a regressar, a coisa seja o mais simpática possível. E mesmo que não regressemos, mesmo que seja "só" isto, não será igualmente crucial aproveitar o melhor possível?

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Bala de Canhão


Recordam-nos que quase tudo é possível — eles sabem melhor que nós que os monstros existem e ensinam-nos que é preciso acreditar em magia uma vez por outra. Reconduzem-nos o olhar para baixo — eles mostram-nos que quem ergue demasiado o queixo perde a noção do chão e tropeça mais. Relembram-nos que é preciso sonhar — eles levam-nos em altos vôos no Bala de Canhão mesmo que o nariz fique todo amassado das mil vezes em que se despenha a pique. Que todos possam ter sempre uma criança por perto para mantermos fresco o nosso pensamento e doce a nossa alma. Eu cá tenho muita sorte!