terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

O Louco


Perguntais-me como me tornei louco.
Aconteceu assim:
um dia, muito tempo antes
de muitos deuses terem nascido,
despertei de um sono profundo e notei que todas
as minhas máscaras tinham sido roubadas
- as sete máscaras que eu havia confeccionado
e usado em sete vidas -e corri sem máscara pelas
ruas cheias de gente, gritando:
"Ladrões, ladrões, malditos ladrões!"

Homens e mulheres riram de mim e alguns correram
para casa, com medo de mim. E quando cheguei à praça
do mercado, um garoto trepado no telhado de uma
casa gritou: "É um louco!".

Olhei para cima, para vê-lo.
O sol beijou pela primeira vez minha face nua.
Pela primeira vez, o sol beijava minha face nua, e
minha alma inflamou-se de amor pelo sol,
e não desejei mais minhas máscaras. E, como num
transe, gritei:

"Benditos, benditos os ladrões
que roubaram minhas máscaras!"

Assim me tornei louco.

E encontrei tanto liberdade como segurança em minha loucura:
a liberdade da solidão e a segurança de não ser compreendido, pois aquele que nos compreende escraviza alguma coisa em nós.

― Khalil Gibran

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Infinitudes


Não penses que te esqueço. Então ainda não sabes que trago comigo todos aqueles que amo? Não sabes que o coração é infinito e que há tantas formas de amor quantas pessoas há no mundo? É que eu acredito mesmo que o amor liga as almas mesmo quando os corpos não se encontram e os olhos não se cruzam. Não te queiras esquecer de mim. Esquecer é perder. Pelo contrário. Guarda. Guarda e lembra-te e será teu para sempre. Não sabes que quanto mais guardares mais pleno serás? Não sabes que corações cheios são corações vivos? Dizes-me que chegou ao fim e eu acho que começou. O amor não tem tempo e sem tempo não há princípio nem fim. Dizes-me que é difícil e dói. Sim. Mas não esqueças aquilo que dói. Dói porque é importante. Dói porque está vivo. Dói porque é amor. E pelo amor, tudo. Pelo amor, mais. Ele acrescenta-nos sempre.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Fevereiro

Escute só.
Isto é muito serio.
Ande,
escute que isto é sério.
O mundo está tremendamente esquisito.
Há dez anos atrás o Li** disse que existe uma rachadura em tudo
e que é assim que a luz entra
não sei se entendi.
(…)
O amor é um animal tão mutante,
com tantas divisões possíveis...
Lembra daqueles termómetros que usávamos na boca
quando éramos pequenininhos?
lembra da queda deles no chão?
então,
acho que o amor quando aparece
é em tudo semelhante à forma física do mercúrio no mundo
quando o vidro do termómetro se quebra,
o elemento químico se espalha,
e então ele fica se dividindo pelos salões de todas as festas
mercúrio se multiplicando…
acho que deve ser isso uma das cinco mil explicações possíveis para o amor.
Ah, é..
Eu gosto de você...
A luz entrou torta por nós adentro,
Mas olhe..
Eu gosto de você..
(…)
Hoje ainda faz bastante frio.
(...)
A esta hora na Terra é metade Carnaval, metade conspiração,
metade medo, metade fé,
metade folia, metade desespero,
E provavelmente, a esta hora,
uma metade do mundo está dançando, e a outra metade dormindo.
(...)
Eu acredito que agora exista alguém profundamente acordado.
(...)
Escute, isto é serio.
Andamos crescendo juntos, distraidamente.
As árvores crescem connosco.
Nossa pele se estende.
Nosso entendimento teso, também.
(...)
Quanto ao um para um entre nós dois, isso logo se vê.
Não sei nada sobre a paixão,
suspeito que você também não.
Mas começo a entender que o compasso da fé está mudando a passos largos:
dois para lá,
e dois para cá.
portanto, escute, isto é muito sério.
Isto é uma proposta ao trinta anos.
Agora que o mercúrio assumiu sua posição certa,
vem comigo achar o metrónomo mágico entre a folhagem.
E no caminho até lá,
vem dançar comigo,
vem.

― Matilde Campilho


https://www.youtube.com/watch?v=VasLnEWnAxY

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Boyhood


― So what's the point?
― Of what?
― I don't know, any of this. Everything.
― Everything? What's the point? I mean, I sure as shit don't know. Neither does anybody else, okay? We're all just winging it, you know? The good news is you're feeling stuff. And you've got to hold on to that.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Acção e Contemplação


Há pessoas que são como cascatas. Atiram-se ao mundo, fazem barulho, e exteriorizam muito. A sua energia está mais dirigida para fora do que para dentro. São pessoas extremamente comunicativas e activas, que expressam com facilidade as suas opiniões e tentam impor suas ideias. São vivaças, ruidosas, expansivas. Fazem propaganda com facilidade. Outras pessoas são como serenos ribeiros. Apresentam uma intensidade diferente na forma de estar e de viver. São minimamente sociáveis mas gostam mais de ouvir do que falar. São mais contidas e mais introspectivas. Não buscam aparecer. Todo o seu corpo fala mais baixinho. Podemos dizer que o primeiro tipo tende mais para a acção, e o segundo, para a contemplação.
Vendo por outro prisma, do lado mais expansivo há, por vezes, o perigo de carência de vida interior, de profundidade e de capacidade de pensar. A pessoa pode agir demais e elaborar pouco, adquirindo pouca consciência de si. Ao querer impor-se demasiado nem sempre escuta o outro e o mundo. Do outro lado, mais recatado, há o perigo de nos tornarmos um poço de águas paradas, há o risco de estagnação. O excesso de introversão pode resvalar para a ruminação ou para o isolamento. Podem mesmo existir sérias dificuldades de expressão e, consequentemente, de afirmação e de capacidade de criar (pela acção).
Contudo, uma vez que na actualidade o agir predomina sobre o contemplar, a falta de reflexividade é o risco mais iminente. A maioria das pessoas, engolidas por um mundo de solicitações constantes do exterior, têm pouco tempo, espaço e disponibilidade para olhar para dentro.  Muitos, principalmente nas gerações mais novas, já não são educados para isso nem sabem como fazê-lo. No entanto, é fundamental serenar para ganhar perspectiva das coisas. De nós e da vida que levamos. Pede-se hoje iniciativa, empreendedorismo, mas o agir sem reflexão prévia não será o melhor caminho. É sempre preciso desconfundir acção e impulso para não embarcarmos numa "fuga para a frente", ou seja, num agir para não pensar.
Por isso, é importante abandonar o bulício urbano por um dia que seja. Encontrar um porto de abrigo e reparar como longe do ruído é mais fácil ganhar visão e escutar o que diz a alma. O objectivo não é permanecer na contemplação, mas sim utilizá-la como trampolim para a acção, uma acção mais verdadeira. Dentro de nós há sempre um anseio pelo equilíbrio. Queremos dar e receber, comunicar e compreender, conseguir agir, poder sentir e saber pensar. Precisamos de uma vida interior rica mas ao mesmo tempo queremos ser capazes de realizar algo que outras pessoas possam reconhecer e receber. Passar a vida a agir sem pensar ou passar vida a pensar sem agir são os dois extremos que devemos, a todo custo, evitar.