segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

O Sabotador Interno

Dentro de nós pode habitar uma parte hostil e que rejeita, inconscientemente, qualquer tipo de experiência positiva, prazer ou gratificação. O 'sabotador interno' de Fairbairn (Ego Anti Libidinal) corresponde à parte do ego que se identificou a um objecto frustrante/rejeitante (ou às experiências precoces vividas como frustrantes e impeditivas).


terça-feira, 24 de novembro de 2015

O Homem na Arena

Arena de Pula, Croácia
"Não é o crítico que importa; nem aquele que aponta onde foi que o homem tropeçou ou como poderia ter feito melhor. O crédito pertence ao homem que está na arena, cujo rosto está manchado de pó e suor e sangue; que luta com bravura; que erra, que desaponta uma e outra vez, porque não há esforço sem erros e decepções; mas que, na verdade, se empenha nos seus feitos; que conhece grandes entusiasmos, as maiores paixões; que se entrega a uma causa digna; que, no melhor dos casos, conhece por fim o triunfo da grande conquista e, no pior, se fracassar, fracassa ousando grandemente (...)"

— Theodore Roosevelt

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Paisagens Humanas

Fotografia de Finn Beales
Fotografia de Sofia Pracana
Fotografia de Finn Beales

Há pessoas que são florestas cerradas. Oferecem caminhos sinuosos, por vezes agrestes, entre o denso arvoredo. Envolvem-nos em nevoeiro, atirando-nos ao arrepio de enredos misteriosos enquanto o diabo esfrega um olho. O dia é curto, a noite é longa. E há as sombras. Pressentimos que muito se esconde entre as sombras mas, como não nos é permitido perceber o que é, o descanso não tem lugar aqui; vigilantes, os sentidos precisam de se certificar que não nos perdemos ou que nenhum animal à solta nos surpreenderá. Lembramo-nos destas pessoas com o fascínio que nos despertam os lugares inóspitos, muito belos na sua natureza mas que não se permitem habitar.
Há pessoas que são grandes cidades. Espaços pulsantes, agitados, que nos oferecem luzes, entretenimento e cultura, e nos fascinam pelo seu charme e movimento. Oferecem-nos um pouco de tudo excepto o silêncio e a possibilidade de contemplação que nos faz falta. Também as luzes podem ofuscar. Não há grandes perigos mas o ruído impera, cansando-nos. Depois, o tempo aqui é demasiado veloz, não há espaço para o tédio nem para a placidez. Recordamos estas pessoas com o sorriso que nos desperta a chegada de madrugada a uma metrópole que nunca dorme.
Há pessoas que são praias abertas. Lugares luminosos, amenos, cujos areais se estendem ao alcance dos nossos olhos. E ali nos espraiamos, horizonte sempre à vista, descansando o corpo e o espírito. Podemos correr, podemos dormir, podemos tomar banho. Podemos despir-nos sem pudor. O tempo corre sem pressas. Faltará, porém, alguma da energia vibrante que encontrámos noutros lugares, florestas e cidades desse mundo. Faltará o arrebatamento. Lembramo-nos destas pessoas com a serenidade de quem chega a casa.
A diversidade natural é a maior riqueza do nosso planeta. Que se saiba, não há ainda outro igual: tantos cenários, tanta complexidade. Da mesma forma nos encanta o espectro humano. É nessa multiplicidade que nos desenvolvemos. Entre florestas, praias e cidades, viver é precisamente ir explorando todos os ambientes com a curiosidade que nos é inata, retirar o melhor de cada um e descobrir onde queremos morar, onde seremos mais felizes, a cada momento.

domingo, 8 de novembro de 2015

Do que aprendi


Aprendi com tudo isso que aprende mais rápido quem sabe olhar em diferentes direcções e adopta novos ângulos de visão; aprende mais rápido quem escuta o outro, quem se dispõe a abandonar os seus desejos ou crenças para criar espaço; aprende mais rápido quem é humilde e também quem aceita sem oferecer excessiva resistência; aprende mais rápido quem não tem medo de dobrar ou de cair e quem se ri de si mesmo quando tal acontece; aprende mais rápido quem não se deixa apanhar pela vergonha de falhar, de fazer mal feito; aprende mais rápido quem se expõe, porque se arrisca; aprende mais rápido quem se desapega da prepotência de querer aquilo naquele momento e daquela maneira: às vezes não dá. Aprende mais rápido quem tenta distinguir o possível do impossível. Ou seja, aprende mais rápido quem respeita a realidade enquanto ser gigante que não se verga e por isso aceita a impotência de viver nela e com ela. Aprende mais rápido quem não perde mais que o tempo suficiente a lamentar-se ou a enraivecer-se com isso. Aprende mais rápido que tem essa capacidade de ajustamento e/ou adaptação. Porém, aprende mais rápido quem se permite sair da harmonia da adaptação quando surgem perguntas e se impõe um outro entendimento. De resto, e enquanto isto, aprende sempre mais rápido quem intui que o tempo também tem o seu papel e escolhe avançar — à distância entendem-se melhor as coisas.

sábado, 31 de outubro de 2015

O Preço do Silêncio (in Expresso)

Reflectia eu, por determinada razão, sobre o drama destes miúdos, encolhidos nos seus cantos, repetidamente violentados de várias maneiras, gradualmente mais e mais fragilizados. Pensava eu numa opinião ouvida há uns dias, uma análise acerca da autonomização destes miúdos, 'vítimas de bullying', acerca de formarem a sua identidade com mais facilidade por se encontrarem fora do 'rebanho'. Entendo a lógica mas não podemos ir por aí. É violentíssimo, é terrorismo, é desamor. A autonomização pelo desamor não interessa a ninguém. Então, pensava eu em tudo isto e nem a propósito:"Há pais que ainda acham que o bullying faz parte de uma infância normal, mas o normal são os conflitos, não a violência continuada e intencional”

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Altruísmo, Egoísmo e Amor-Próprio


A nossa cultura, de forte tradição judaico-cristã, apela ao amor ao próximo. Mas se amar os outros é uma virtude, tantas vezes se insinuou que amar-se a si mesmo seria um “pecado”. Aliás, Calvino referia-se ao amor-próprio como se fosse uma “peste”. Fazia-se então, mais do que hoje, o elogio da capacidade de sacrifício. Partia-se do ponto de vista que o amor pelo outro e o amor por nós mesmos são dois tipos de amor que se excluem mutuamente. Hoje sabemos que o amor pelo outro não pode sequer existir sem que, primeiro e/ou simultaneamente, exista amor-próprio. 
 O amor pelo outro implica o respeito pelo ser humano em geral, e eu sou tão ser humano quanto todos os outros. Repare-se que mesmo a Bíblia não nos ensinou a colocar o outro como prioridade, mas sim em igualdade, pois diz-nos “ama o próximo como a ti mesmo”. O respeito pela nossa integridade e o amor pelo nosso “eu” não podem ser dissociados do respeito e amor pelos outros seres. Assim, as atitudes de amor (por nós e pelo outro) não são uma disjunção (ou uma ou outra) mas, sim, uma conjunção (uma e outra).
Apesar de todo este conhecimento teórico, é com facilidade que, no dia-a-dia, ainda se apregoa como grande virtude de carácter o facto de se "pensar mais nos outros do que em si mesmo". É uma tendência enraizada da dita cultura, que conduz a uma incondicional admiração do chamado “altruísmo” (dedicação ao outro) e da instituída confusão entre amor-próprio e egoísmo (dedicação a si mesmo). Quanto ao altruísmo, entenda-se que um sujeito cujo sentido da vida é viver para os outros, não pode viver em amor: a negligência de si mesmo, resulta, mais cedo ou mais tarde, numa hostilidade escondida e/ou inconsciente para com o mundo ― zanga, amargura, frustração e sensação de injustiça/défice ― dados os sucessivos desrespeitos a que a pessoa se sujeita. O esvaziar-se de si não pode ser considerado uma coisa boa. Da mesma forma, o encher-se de si e só de si, aquilo a que chamamos egoísmo, não se pode confundir com amor-próprio. Egoísta é aquele que apenas se interessa por si mesmo, que quer tudo para si e que não retira qualquer prazer do acto de dar, pois apenas pretende receber. E o segredo está no facto de que o sujeito egoísta, ao contrário do que possa parecer, não se ama a si mesmo: está profundamente necessitado, como tal, pouco tem a oferecer. Assim, egoísmo e amor-próprio, não só não são nada semelhantes, como são profundamente distintos e mesmo contraditórios. Torna-se então fácil distinguir aquele que se ama (pois também ama o outro mas sempre com equilíbrio e com balizas) daquele que, precisamente por não se amar, não pode nem consegue amar mais ninguém.
Queiramos ou não, nós somos e devemos ser o nosso centro. E só em paz com isso, capazes de nos amarmos, seremos capazes de amar o próximo. Mães mais felizes são melhores mães. Filhos mais felizes são melhores filhos. Homens e mulheres mais felizes são melhores amantes. Que cada um se respeite e se ame para, de barriga cheia, possamos amar o outro e dedicar-lhe o melhor de nós, sempre porque queremos e não porque devemos.  

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Da necessidade ao desejo


Há coisas que precisamos e das quais dependemos (necessidades) e coisas que queremos porque assim escolhemos (desejos). A necessidade diz respeito a algo muito básico, mais primário na nossa condição humana. Fala-nos de algo que nem se sabe bem porque acontece: só se sabe que se precisa e que é assim, queira-se ou não se queira. Assim, quando a necessidade não é satisfeita, permanece, sob a forma de uma falha básica dentro de nós. Já o desejo é de outra ordem. O desejo é secundário, na medida em que chega depois. Pressupõe algo que não é absolutamente fundamental mas que representa um valor acrescentado à nossa vida. É algo que foi pensado, sonhado, de forma mais consciente, e que não nos é imposto de dentro.
De uma forma geral, o caminho do desenvolvimento humano faz-se evoluindo da necessidade para o desejo. Enquanto bebés, temos muitas necessidades, mas não desejos, no sentido referido de escolhas pensadas, conscientes. Chegamos a “seres desejantes” à medida que crescemos e se existiu possibilidade de atender suficientemente às necessidades. Caso contrário, ficamos bloqueados ou suspensos na carência primária, que tornará a busca dessa satisfação uma prioridade para nós. O caminho de amadurecimento do Eu não acontece se há privação nas necessidades mais fundamentais.
Então a necessidade coloca-nos no campo das dependências, enquanto o desejo nos fala de escolhas livres. Eu só desejo quando já não preciso, até lá, necessito e dependo disso, tantas vezes, para minha sobrevivência. Há uma fome daquilo que me falta que ainda me esmaga. E enquanto assim for, estou no campo da necessidade, aquém do desejo. Se nunca recebi afecto, estou imerso na sua carência e ele representa, naturalmente, uma busca incessante. Mas se recebi afecto suficiente, consigo aguentar melhor a sua eventual ausência, passando de uma questão de sobrevivência a um desejo que está por realizar.
Assim, no amor romântico, a diferença entre "preciso de ti" e "quero-te" é uma diferença que corresponde aos quilómetros de amadurecimento que vão da necessidade ao desejo. É poético dizer a alguém "preciso de ti". A mistura entre necessidade e desejo, característica na paixão, alimenta as artes desde sempre, apresentando o amor romântico como uma coisa quase visceral. Mas o amor homem-mulher, amor erótico de seu nome, corresponde, em maior escala, a um desejo e não a uma necessidade. Eu estou contigo não porque preciso de ti mas sim porque te quero. Porque te escolhi. Não morro se fores embora mas sou muito mais feliz contigo.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Faça você mesmo: Sobre a auto-suficiência

Liekeland


De há muito tempo para cá que o Homem tem tentado, por todos os meios, ser cada vez mais auto-suficiente. Precisar, cada vez menos, do que quer que seja. Estar preparado para tudo e superar todos os desafios. De quanto menos recursos precisar (materiais ou humanos), melhor. As palavras de ordem são, por exemplo, “faça você mesmo”, “guia de auto-ajuda”, “self-service”. Cada vez mais poderosos, cada vez mais competentes ou, bem vistas as coisas, cada vez mais sós.
É. No dia em que eu achar não precisar do outro para mais nada, morrerei: encerrado em mim mesmo, tendo por companhia a solidão ou a omnipotência. No filme “Into The Wild”, baseado numa história verídica, percebemos que, em última análise, é a fuga do mundo e dos outros que fazem parte do mundo que acaba por destruir Christopher McCandless: o isolamento, confundido com autonomia, mata. Mais cedo ou mais tarde, precisamos sempre de alguém. Somos seres gregários, isto é, que se agregam. E isso tem funcionado bem, ao longo de toda a humanidade. Cooperamos, coligamos, colaboramos, ou seja, relacionamo-nos. Somos, por todos estes motivos, seres que interdependem. Querer negar isto é negar a condição humana. “Eu não preciso de ninguém” é querer tornar-se bicho ou máquina, sendo que nem alguns bichos conseguem sobreviver sós e que mesmo uma máquina precisa de alguém que a manobre, a dado momento.
Nascemos a precisar do outro e provavelmente, morreremos precisando do outro. Durante o caminho, percorremos alguns trilhos de autonomização, de crescimento e diferenciação, mas vivemos sempre numa autonomia relativa. Perceber e aceitar isto é poder também serenar. Perceber que isso está na nossa natureza, desde os primórdios da espécie. Que não ser auto-suficiente não é um crime, pelo contrário: é a condição humana no seu melhor.
Sem dúvida que no outro extremo se pode encontrar o excesso de dependência, a incapacidade de ser autónomo e de tomar conta da nossa vida. São histórias de meninos pendurados no pescoço de suas mães ou sentados em qualquer colo que lhes apareça pela frente. São histórias de crescimentos boicotados, suspensos ou esburacados. Sem dúvida, portanto, que o caminho da saúde mental passa por uma autonomização “suficientemente boa” e consequente crescimento pessoal. Sem a capacidade de estar só, será difícil construir uma vida adulta de qualidade. Como ouvi recentemente, sem sermos um bom ímpar, não seremos um bom par. O problema então não será depender do outro, mas em que medida dependemos. Há algures, parece, uma medida mais ou menos saudável para isto de precisarmos sempre de alguém. 

terça-feira, 7 de julho de 2015

O Cansaço e Outras Máscaras da Depressão

Álvaro de Campos

Apesar de haver cada vez mais sensibilidade relativamente aos assuntos do foro da saúde mental, a verdade é que alguns sintomas depressivos continuam a ser desvalorizados e/ou a passarem despercebidos. Estar deprimido não é somente o abismo negro, desesperante, que muitos imaginam. Não é obrigatório chegar ao ponto de apresentar tendências suicidas; podemos estar deprimidos e continuar a funcionar nos vários níveis da nossa vida, embora num ritmo e frequência diferentes. Ou seja, estar deprimido não implica necessariamente abandonar o trabalho ou negligenciar a higiene pessoal ou da casa e as relações familiares. Muitos dos tantos que trabalham todos os dias, tomam banho e estendem a roupa todos os dias, vão buscar os filhos à escola todos os dias, apresentam sinais de depressão, em maior ou menor grau, que não os incapacitam na totalidade, mas que diminuem a sua felicidade e qualidade de vida:

1.       O “cansaço” crónico: abatimento, inércia, apatia, “preguiça” de fazer as coisas, ausência de vitalidade, de dinamismo, de energia;
2.      A falta de interesse e de alegria: ausência de entusiasmo pelas coisas, falta de apetite pela vida, dificuldade em sentir prazer nas mais diversas circunstâncias, levando, por vezes, ao isolamento social e relacional;
3.      A baixa auto-estima e desvalorização pessoal: sentimento de que ninguém gosta de nós, que não temos valor e que não fazemos nada de jeito;
4.      A culpabilidade: perda da capacidade de distinguir uma acusação justa de uma acusação injusta, aceitação acrítica das acusações que nos são dirigidas, responsabilização excessiva ou mesmo ilógica perante as situações que não dependem de nós;
5.      A perda da líbido, do desejo sexual: dificuldade ou incapacidade de retirar prazer, gozo, da relação com o outro, às vezes justificada com o dito “cansaço” ou pela acusação do outro;
6.   A perda de apetite ou alimentação descuidada: pouca vontade de comer e hábitos alimentares nocivos e/ou nutricionalmente pobres (à base de “comida preguiçosa”, como por exemplo, snacks, “fast-food”, guloseimas);
7.      A insónia e/ou fadiga: turbulência nos padrões de sono (dificuldade em adormecer, sono interrompido, ou excesso de horas de sono mas pouco revigorantes);
8.      As dores físicas: queixas sistemáticas de sofrimento físico, seja ósseo, neurológico, visceral ou muscular, com presença de dores mais ou menos resistentes aos tratamentos médicos, muitas vezes sem diagnóstico clínico que justifique a sua presença;
9.      A memória fraca: dificuldade em lembrarmo-nos detalhadamente dos acontecimentos e atenção diminuída/empobrecida sobre a vida, muitas vezes atribuída à “distracção” ou “cansaço”;
10.   A indecisão: um querer e não querer ou nem sequer saber o que se quer ou para onde se vai, consequência directa da dificuldade em se ouvir a si mesmo ou de confiar em si mesmo.


quarta-feira, 1 de julho de 2015

Da solidão necessária


A espécie humana é social, gregária, mas é também reflexiva e, nesse aspecto, solitária. Como diz uma professora e colega que estimo, "a vida está nos paradoxos". Porém, tantas vezes parece quase necessário justificar esse lado de quem privilegia estar só/sossegado num mundo que nos entra loucamente pela "porta" dentro todos os dias. Há umas décadas atrás, era diferente. Sabíamos, aceitávamos e não questionávamos que muitos momentos eram bons para se estar só. Hoje, na era das redes sociais e dos "open spaces", o solitário não "existe". Mais, se existe, é desrespeitado. Nem sempre quem se coloca à margem é amado e/ou considerado da mesma forma. Esta é uma questão que apenas faz sentido pensar aqui, neste mundo dito ocidental, onde a acção passou a ser mais valorizada que a contemplação e se esquece, tantas vezes, que a solidão também pode ter muitas vantagens. É no espaço de encontro connosco que podemos "ser", por oposição ao "fazer". E é quando podemos "ser" que nos surgem as melhores criações. É também na ausência que interiorizamos a presença, que aprendemos a guardar as coisas dentro de nós. E sem esses espaços de encontro connosco dificilmente podemos saber estar, verdadeiramente, com o outro.

O Viver Criativo


Uma flor pode ser apenas uma flor ou pode ser uma flor que eu decidi usar para um fim qualquer. Por isso, essa flor destaca-se de todas as outras e eu crio uma relação com ela diferente de todas as outras. Num certo sentido, eu “criei” aquela flor (naquilo que ela representa para mim e que não representa para mais ninguém). Ela torna-se símbolo de algo. Ficará embebida numa emoção, numa memória, num pensamento ou sensação. Sobre a sua rosa, dizia o principezinho às outras rosas: “Claro que para um transeunte qualquer, a minha rosa é perfeitamente igual a vocês. Mas, sozinha, vale mais do que vocês todas juntas porque foi a ela que eu reguei.” Isto é a atribuição de subjectividade ao mundo objectivo e chamamos-lhe o “viver criativo”. Ou, de uma forma mais simples, o brincar.
Há esta ligação a preservar, entre a vida objectiva (a realidade compartilhada) e a nossa vida subjectiva (a minha leitura da realidade). O grito de uma gaivota pode ser (e é) apenas o grito de um gaivota, aquele grito ouvido no mesmo preciso momento por uma centena de pessoas, mas é também, para mim e só para mim, o trampolim para emoções, memórias, pensamentos e sensações; passadas, presentes ou futuras. Talvez, então, aquilo que mais dá significado à nossa vida seja essa arte do “viver criativo”, “brincando” com uma flor, o grito de uma gaivota ou uma pedra no caminho. É o dom de transformar um mundo que já existe. Transformá-lo, na perspectiva em que uma coisa passa a significar outra coisa, simultaneamente objectiva e subjectiva: muito mais rica de simbolismo e de substância.
Quando a vida é demasiado concreta, falta significado às coisas. Falta viver criativamente. Reinventar o mundo e, através disso, reinventarmo-nos. O viver criativo cresce em nós, desde pequenos, se temos a possibilidade de brincar. Quando brincamos, nada é o que é: um mata-moscas pode ser uma arma, uma formiga pode ser um soldado, um caldo de folhas e flores pode ser uma sopa. Nesse espaço transicional entre o que é e o que pode ser, vive-se criativamente. E essa arte permanece por toda a vida.
O viver criativo é a poesia do quotidiano. É abrir os olhos para o estético e para o sensível e deixá-lo ligar-se ao concreto. É também e ainda, possibilidades sem fim. É expansão pois, no limite, nada jamais se repetirá: chegamos ao mais importante, todas as relações de amor podem ser diferentes todos os dias. Viver criativamente é perceber essa potencialidade em todas as coisas. E na nossa experiência, na nossa interioridade, nada será apenas aquilo que é, mas será sempre uma espaço de transição entre o que é e o que pode ser. E que seja um lugar onde fomos, ou poderemos ainda ser, mais felizes. 

terça-feira, 23 de junho de 2015

Conformismo, Acomodações e Outras Histórias

I)
“Conformei-me”, disse-me.
Quando o conheci, parecia condenado. No rosto, a ausência de esperança, na alma, a incapacidade de se afirmar senhor do seu destino. Como mente bem, o Homem. Como se engana a si mesmo. Como se defende e se justifica perante si próprio, como se ilude e finta o julgamento que faz de si todas as noites. Como tenta não se olhar de frente no espelho quando receia reconhecer ali os seus medos e incapacidades. Como quer esconder da sua alma que não foi capaz de lutar por ela. Dói, o remorso. Dói, a impotência. Dói, o medo. Mas, no íntimo mais íntimo de nós, sabemos.
Conformaste-te ou tens medo?
Tenho medo. Eu tentei mas era sempre tão difícil. Fui desistindo. Eu sonhava mas deixei de sonhar. Conformei-me.
O medo fez com que te conformasses e por te conformares abriste caminho ao medo. O medo come tudo. Foi precisamente isso que te enfraqueceu. A incapacidade de “continuar a ser”.
Por cada momento em que nos falha a possibilidade de “ser” ou a coragem de “continuar a ser” matamos um pedaço de nós. Ficamos mais frágeis e mais perdidos a cada “derrota” percebida. E a cada batalha que recuamos, sabemos menos quem somos.

II)
“Não sei porque me acomodei, disse-me.
A história repete-se. Quando a conheci era uma mulher, sobretudo, confusa. Não tinha ainda consciência de que tinha deixado, há demasiado tempo, de ser feliz.
Tu sentias mas acho que só agora consegues pensar sobre isso.
Sim, eu já sabia. Eu sentia-me só mas não quis ver. E isso deixa-me zangada. Comigo.
Por cada pensamento reprimido, por cada discussão adiada, por cada zanga amordaçada, por cada grito silenciado, é um pedaço de ti que matas. Foi precisamente isso que te enfraqueceu. A incapacidade de “continuar a ser”.

III) 
Duas vidas. Várias vidas. O mesmo dia. O mesmo medo. O medo de se permitir ser pessoa inteira. Como se faz? Por onde se vai? Então lembro-me do Alexandre O’Neill, que sabia destas coisas do medo, companheiro da condição humana, e contava, em parte, assim:

(…)
Ah o medo vai ter tudo  
tudo 
(Penso no que o medo vai ter  
e tenho medo  
que é justamente  
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo  
quase tudo  
e cada um por seu caminho  
havemos todos de chegar  
quase todos  
a ratos (…)

IV) Ou não.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Coisas Bonitas


Deixa-me fazer-te cócegas. Deixa-me fazer-te rir. Deixa-me falar-te das coisas bonitas que passam despercebidas. Deixa-me fazer-te sorrir no dia mais triste. Vem dançar comigo. Deixa-me aquecer-te os recantos gelados onde o sol nunca entrou. Falo-te da alegria de estarmos aqui no mundo ao mesmo tempo. Podíamos nunca nos ter encontrado, já pensaste nisso? E agora, já sorris? Falo-te da graça escondida nas cabeçadas que damos todos os dias aqui neste lugar onde nos enfiaram. É tão tristemente engraçado. Falo-te da sublime arte de rir e chorar ao mesmo tempo. Falo-te também da curta gargalhada dos momentos simples e ligeiros. Vá, deixa-me fazer-te cócegas. Deixa-me fazer-te rir. Deixa-me fazer-te bem.

sábado, 13 de junho de 2015

A pergunta do eterno retorno





      Se pudéssemos repetir a nossa vida tal e qual como ela se desenrolou até hoje, desejaríamos fazê-lo? O sábio Zaratustra, de Nietzsche, vai mais além, e pergunta: “E se um dia ou uma noite um demónio fosse atrás de ti até à tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há-de retornar.” Que sentiríamos?
A ideia de repetir ciclicamente a mesma vida, passando por tudo da mesma exacta maneira, pode funcionar como um exercício importante para questionarmos a direcção e o sentido que temos dado à nossa aparentemente curta existência. Embora uma existência em loop seja, por si só, assustadora, a melhor hipótese seria fazer dela o mais agradável possível. Então, se fosse garantido o nosso eterno regresso, exactamente nos mesmos moldes que na actualidade, até onde estaríamos dispostos a mudar coisas por forma a assegurarmo-nos de uma eternidade feliz? É importante ir questionando se o nosso percurso tem sido fundamentalmente prazeroso ou se é, pelo contrário, insatisfatório, ou mesmo terrível. Quantos de nós amam a sua vida? Ao fazer este balanço, o propósito não é mergulharmos em lamentações quanto ao que já passou mas sim dirigir o olhar para o que ainda pode vir. Amar o seu destino ou, mais adequadamente, criar um destino que sejamos capazes de amar.
Porém, nenhuma transformação positiva pode ter lugar se vivermos exclusivamente agarrados à ideia de que a nossa vida é como é por forças exteriores a nós: azar, má sorte, karma, sina, fado ou destino. A pergunta de Zaratustra obriga-nos a olhar a forma como pensamos as responsabilidades. Percebemos que o perigo de depositar a responsabilidade da nossa caminhada (e/ou da nossa insatisfação) no universo ou em qualquer outro exterior a nós mesmos, é que a situação poderá não sair do impasse. Então, se o demónio de Zaratustra nos condenasse, hoje, ao eterno retorno, continuaríamos no mesmo exacto lugar, estado e formato em que nos encontramos? Sentiríamos contentamento e satisfação em regressar à nossa existência assim como a temos conduzido? Ou seria um sufoco? E se assim for, seríamos passivos ou activos? Quanto tempo mais permaneceríamos no mesmo lugar? Até quando ficaríamos à espera? Até onde aguentaríamos? E se, efectivamente, nada acontecer? Nenhum milagre, nenhuma reviravolta fácil, nenhum chamamento ou insight? E se só nós somos responsáveis pela vida que levamos e pelos pilares que a sustentam? Transformaríamos a nossa vida, perseguindo sonhos, concretizando projectos, assumindo desejos? A liberdade de escolher fazê-lo é nossa. E a responsabilidade de escolher não o fazer, também.
É desconfortável pensar estas questões. É duro sentir este peso da hipótese mais certa: em última análise, os agentes da nossa felicidade e infelicidade somos nós. Que terrível sermos o nosso próprio carrasco. Sim, é desconfortável, mas é, garantidamente, o caminho possível nisto que é o curso da nossa vida. Sem essa consciência, mínima, talvez passemos o tempo que nos sobra à espera de algum milagre. Pode chegar. Ou não. Entretanto, é importante irmos aferindo o que se passa cá dentro. É preciso ouvirmo-nos a nós mesmos, escutar a voz que às vezes soa baixinho e que tantas vezes ignoramos (escondidos na ideia de que não há volta a dar ou no medo de tudo e mais alguma coisa) para que, caso o dito demónio nos obrigue a regressar, a coisa seja o mais simpática possível. E mesmo que não regressemos, mesmo que seja "só" isto, não será igualmente crucial aproveitar o melhor possível?

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Bala de Canhão


Recordam-nos que quase tudo é possível — eles sabem melhor que nós que os monstros existem e ensinam-nos que é preciso acreditar em magia uma vez por outra. Reconduzem-nos o olhar para baixo — eles mostram-nos que quem ergue demasiado o queixo perde a noção do chão e tropeça mais. Relembram-nos que é preciso sonhar — eles levam-nos em altos vôos no Bala de Canhão mesmo que o nariz fique todo amassado das mil vezes em que se despenha a pique. Que todos possam ter sempre uma criança por perto para mantermos fresco o nosso pensamento e doce a nossa alma. Eu cá tenho muita sorte!

quinta-feira, 30 de abril de 2015

Pessoas


Toda a prática de yoga remete para o equilíbrio, i.e., para a harmonização de forças opostas. E assim sendo, oscila entre movimentos de avanço e retrocesso, actos de coragem e rendição, momentos de segurar e largar, trabalho de transição e permanência, consciência de força e ligeireza, sensações de prazer e dor. Nessa oscilação no tapete, perfeita metáfora da vida, buscamos o centro de todas as coisas. Principalmente o nosso corpo e mente. Esse lugar de conforto onde nos encontramos connosco. Onde respiramos sem dificuldade e onde nada dói. Onde sentimos paz. Só que não podemos ficar muito tempo aí porque a oscilação é o estado natural do mundo e porque o crescimento e expansão se faz pelo desconforto, pelo risco, pelo negativo. E saímos do centro. Essa dinâmica é a condição mais básica do desenvolvimento: onde há paragem, não há vida. Nesse processo, há momentos de força extraordinária. Saímos do centro, atiramo-nos de cabeça e somos capazes de fazer qualquer coisa. Na força descobrimo-nos, ultrapassamo-nos. Encontramos mundos e talentos desconhecidos, potencialidades e possibilidades. E de cada vez que assim é, mudamos o nosso rumo, transformamo-nos a cada novo encontro. Depois, há os desafios que não superamos. Repetimos, ruminamos, ficamos ali. E aí, o contrabalanço dos momentos de humildade e vulnerabilidade profunda que remetem para a nossa absoluta impotência perante os caminhos de evolução das coisas. E aí, rendemo-nos. Rendemo-nos perante os paradoxos. Perante a constatação de que somos tudo e ao mesmo tempo não somos nada. Estendemos os braços e encostamos a testa ao chão e que seja o que for quando tiver que ser. Quem somos nós afinal? E na rendição também nos descobrimos e ultrapassamos. Quando nos rendemos, todo o peso desaparece e é sublime porque somos, subitamente, leves, muito leves. Assim leves, um pequeno sopro pode levar-nos para onde calhar e poderemos descobrir coisas que ainda não conhecíamos nem esperávamos. Quando nos rendemos, entregamo-nos nos braços de algo seguramente maior que nós, que somos tão pequenos para compreender toda a dimensão da vida. E aqui vamos existindo, oscilando entre rendições e actos de coragem, porque a leveza do ser é insustentável por muito tempo mas a coragem sistemática é para guerreiros sobre-humanos. E nós somos e seremos, sempre, simplesmente pessoas.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Matemática dos Beijos


— Um, dois, três, duzentos e cinquenta e sete, cinco mil setecentos e quarenta e nove: quantos beijos cabem na vida?
— Talvez quarenta milhões? (sorriso) Não sei. Curtos ou longos? Tudo depende da duração. Num dia cabem mil quatrocentos e quarenta beijos de um minuto ou um beijo de mil quatrocentos e quarenta minutos. Tu é que escolhes.
— Tens razão. Isso da duração importa. Fizeste-me lembrar também daqueles beijos que ficam connosco já depois de se irem, sabes? E às vezes até se cruzam com outros que hão-de vir: "Olá, ainda por aqui?".
— É, há beijos que se demoram e acho até que alguns nunca acabam. Mas a memória de um beijo vale por um beijo, não?
— Olha que não sei. Cada beijo lembrado pode contar como um novo beijo. Podemos escolher também aqui.
— Hum. E incluindo beijos de que tipo?
— De todos. Dos beijos dados, dos beijos roubados, dos beijos perdidos e dos achados. Dos beijos que procuram e dos beijos que encontram. Dos que fracturam e dos que reparam. Dos que rompem e dos que ligam. Dos beijos que acordam, dos que adormecem. Dos que se encontram à esquina e dos que chocam de frente. Dos de passarinho e dos de corpo inteiro. Dos enternecidos e dos apaixonados. Dos que nos esclarecem e dos que nos confundem. Dos que quase enlouquecem, no bom sentido. Beijo é sempre no bom sentido. Dos beijos que acalmam e dos que assustam. Dos que respiram e dos que sufocam. Dos beijos que nos dissolvem, sabes? Dos beijos-buracos-negros que acabam com a gravidade e nos sugam em espiral para lá do tempo e do espaço. Dos beijos que desaparecem. E dos que nos perseguem. Perseguem. Perseguem. Perseguem.
— Mas queres fazer contas ou escrever um poema?
— Pois se calhar a matemática não se aplica a isto. Teríamos ainda a questão dos beijos sonhados.
— Também querias ir por aí?!
— Claro. Quero ir por todos os lados.
— (sorriso)
— ah! E o beijo dos beijos. Teríamos que contar com o beijo dos beijos.
— Qual?
— Tu sabes. É aquele que não se pode lembrar...
— O que há-de vir?
— Pois. Também não custaria nada. É só somar um no fim.
— (sorriso) Qual fim? Contigo será impossível contabilizar beijos.
— Se calhar. Que se lixem as contas. O que importa é que é sempre a somar. E para que não haja desperdícios lembra-te disto que é importante: um beijo que não se dá é um beijo que não se deu.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

D'Os Passos em Volta

Series Seven Chair by Arne Jacobsen
“- Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio… Enfim, Às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro… Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida… compreende?… a nossa vida, a vida inteira, está ali como… como um acontecimento excessivo… Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e a violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-lo a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos?
Uma vez fui a um médico.
– Doutor, estou louco – disse. – Devo estar louco.
– Tem loucos na família? – perguntou o médico. – Alcoólicos, sifilíticos?
– Sim, senhor. O pior. Loucos, alcoólicos, sifilíticos, místicos, prostitutas, homossexuais. Estarei louco?
O médico tinha sentido de humor, e receitou-me barbitúricos.
– Não preciso de remédios – disse eu. – Sei histórias tenebrosas acerca da vida. De que me serve barbitúricos?
A verdade é que eu ainda não havia encontrado o estilo. Mas ouça, meu amigo: conheço por exemplo a história de um homem velho. Conheço também a de um homem novo. A do velho é melhor, pois era muito velho, e que poderia ele esperar? Mas veja, preste bem atenção. Esse homem velhíssimo não se resignaria nunca a prescindir do amor. Amava as flores. No meio da sua solidão tinha vasos de orquídeas.
O mundo é assim, que quer? É forçoso encontrar um estilo. Seria bom colocar grandes cartazes nas ruas, fazer avisos na televisão e nos cinemas. Procure o seu estilo, se não quer dar em pantanas. Arranjei o meu estilo estudando matemática e ouvindo um pouco de música. João Sebastião Bach. Conhece o Concerto Brandeburguês n.º 5? Conhece com certeza essa coisa tão simples, tão harmoniosa e definitiva que é um sistema de três equações e três incógnitas. Primário, rudimentar. Resolvi milhares de equações. Depois ouvia Bach. Consegui um estilo. Aplico-o à noite quando acordo às quatro da madrugada. É simples: quando acordo aterrorizado, vendo as grandes sombras incompreensíveis erguerem-se no meio do quarto, quando a pequena luz se faz na ponta dos dedos, e toda a imensa melancolia do mundo parece subir do sangue com a sua voz obscura… Começo a fazer o meu estilo. Admirável exercício, este.(…)”

Herberto Helder, Os Passos em Volta (Assírio e Alvim), pp. 9-11

terça-feira, 7 de abril de 2015

Os rebanhos

A história de um rebanho começa sempre no seu pastor. Neste caso, faremos uma viagem à mente enlouquecida de um homem, L. Ron Hubbard, que achou que podia e devia salvar a espécie sabe-se lá do quê (dèja vu?). Se calhar queria salvar-se a si mesmo e de si mesmo mas isso não podia saber ou aceitar. Então parece que pessoas assim constroem estes impérios de devaneios na exacta medida do seu desespero.
Depois o pastor morreu e outro o substituiu mas o rebanho permaneceu. 
Chamamos-lhe rebanho quando deixa de existir a possibilidade de pensamento e/ou divergência. Ou seja, o que merece mais atenção é que vamos encontrando ao longo da História certos sistemas de crenças que capturam emocionalmente e fazem das pessoas aquilo a que poderíamos chamar reféns-de-livre-vontade. É aquilo a que chamamos uma lavagem cerebral. E isto repete-se, em maior ou menor escala. Mudam as circunstâncias e os ideais vendidos mas repetem-se os mecanismos psicológicos que prendem (bem como os que facilitam deixar-se prender). De um lado estamos no campo da manipulação. Da mentira psicótica. Do poder, controlo e domínio do outro. Estamos no campo da doutrinação. Estamos no campo da loucura que infelizmente se propaga quando encontra terreno fértil — a mentira mágica e omnipotente pega bem quando encontra uma mente que procura ser guiada e ver-se livre da responsabilidade do rumo da sua própria vida; mente onde habita uma alma perdida em busca de um sentido para a sua vida, seguramente frágil e carente de uma identidade, talvez também de afecto, reconhecimento e pertença. Este é o outro lado. Traduz-se num gesto que podia ser um encolher de ombros que finalmente encontra uma mão aparentemente sólida a que se agarrar e que repare o narcisismo danificado fazendo-o sentir parte de algo "maior", ainda que o preço seja elevado. Depois é só caminhar com o rebanho e é um pequeno passo até permitir que frutifiquem as ilusões e que se permitam os abusos, a si e aos seus, sem questionar, sem querer ver. Se perguntamos às pessoas porque permanecem ali ou porque fazem o que fazem a resposta será papagueada e, em última análise, não saberão sequer responder. Está aquém do pensamento.

E assim, uma e outra vez regressamos ao conceito de “banalidade do mal” de Hannah Arendt para que não sobrem dúvidas que a falta de capacidade crítica, de um “aparelho pensante” (como lhe chama Coimbra de Matos) é o pior inimigo do Homem. Como diz, no fim do documentário, um dos entrevistados: “If we believe in something we don’t really have to think for ourselves, do we?”.


segunda-feira, 6 de abril de 2015

Morrer de Amor


"Tão bom morrer de amor! e continuar vivendo..."
— Mário Quintana, Conversa Fiada in Baú de Espantos (1986)

quinta-feira, 26 de março de 2015

Rêverie


Nem tudo é pensamento. Nem tudo é imediatamente analisável e prontamente dotado de um significado e de um sentido. Há coisas que acontecem aquém (ou além?) do pensamento. Sonhamos e pensamos o mundo também com nossas emoções, na fina malha que liga as representações simbólicas. São emoções que, grávidas de significado, procuram trazê-lo à luz para que possam ter um sentido. À arte de sonhar essas emoções com o outro, podemos chamar rêverie. Um termo cunhado por Bion, em 1971. É o que se espera que as mães façam com os seus bebés, muito antes do verbo; é também o que se espera que os psicanalistas possam fazer com os seus analisandos é o que acontece numa relação a dois onde se pode sonhar acordado em conjunto. É a capacidade de estar em ressonância com aquilo que o outro projecta dentro de nós. Para isso é preciso poder viajar e perder-se, livre curso, sem medo do que não se entende. Perder-se entre devaneios, fantasias, sensações corporais, percepções fugazes, imagens, dormências, melodias e tudo o que mais atravesse a nossa mente, ainda que temporariamente sem um sentido. A rêverie é uma bússola, em que o norte é dado pela intuição. É tão importante poder flutuar com o outro, ainda que aparentemente à deriva, enquanto esperamos que, naturalmente, esse sonho a dois ganhe um sentido. Sim, nem tudo é pensamento. Debussy também acreditava que música era o espaço entre as notas.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Certezas Absolutas


Dominados pelo egocentrismo, característica daquele que está centrado em si e no seu ponto de vista, e pela omnipotência, crença de que se pode tudo, na infância e ainda na adolescência temos muitas certezas. Quantos pais já tentaram falar com os filhos recebendo em troca um “Eu é que sei!”? Essas certezas são, nessa altura, protectoras: fonte de segurança e de estabilidade necessárias ao crescimento tranquilo, dada a ainda frágil estrutura emocional de uma criança. Pressupõe-se, no entanto, que uma das tarefas da adolescência é precisamente começar a pôr em causa muitas dessas certezas, o que explica parte da instabilidade emocional vivida nesta fase. Tudo o que era certo e seguro, começa a ser questionado, se bem que, para que isso aconteça, é necessário haver uma estrutura interna minimamente sólida, capaz de aguentar o embate com a realidade cada vez mais óbvia, e que não descompense ao questionar o mundo (externo e interno). Chegando à idade adulta, devemos então ser capazes de assumir que pouco ou nada sabemos que seja absolutamente certo. Temos as nossas crenças, mas crer é diferente de saber. Acreditar nas coisas e em nós é importante, mas a crença deve permitir que haja espaço para que seja questionada ou revista. Assim, a ordem natural do crescimento emocional e do desenvolvimento psíquico é que possamos ir flexibilizando o nosso pensamento de forma a ponderar as nossas certezas e estar disponíveis para aprender com os outros.
No entanto, nem sempre as coisas acontecem assim. Por vezes, os adultos têm tantas ou mais certezas absolutas do que as crianças. Acham-se frequentemente os donos da verdade. E demonstram uma certa tendência tirânica para achar que a sua verdade é a verdade universal. Seja em valores pessoais, políticos ou religiosos, é fácil encontrar pessoas cuja posição perante a vida e os outros não permite qualquer discussão. A certeza é a base do fundamentalismo. Em nome das certezas absolutas foram cometidos alguns dos crimes mais sangrentos da nossa história: elas são o fundamento de todo fanatismo. A certeza de que se está na posse da verdade absoluta revela um modo de pensar rígido e pouco reflexivo, pois se já sabemos a verdade, não precisamos reflectir mais sobre o assunto. Problema resolvido.
Então, ao contrário do que tantas vezes parece, a certeza é irmã da insegurança, ou seja, quanto mais inseguros somos, maior a necessidade de estarmos certos. Seja a respeito de que assunto for. É a incapacidade de tolerar as dúvidas que nos conduz aos dogmas. Claro que a existência parecerá muito mais segura se estivermos convictos de saber as respostas a todas as perguntas, mas isso não corresponde à realidade, muito menos pertence à esfera do pensamento maduro. Sócrates disse-nos, com toda a sabedoria: “só sei que nada sei”. Reduzamo-nos à nossa humilde insignificância e aceitemos que a única forma de atingir o conhecimento é manter a mente aberta e um espírito interrogativo.