sábado, 29 de março de 2014

Pedrinha (Sobre a Psicanálise)

As pessoas muitas vezes questionam-se se a psicanálise torna a vida mais fácil. Muito naturalmente, elas desconfiam de qualquer coisa que afirme isso. A psicanálise, além de ser um processo doloroso em si mesmo, não altera o facto de que a vida é difícil. O melhor que pode acontecer é a pessoa que está a ser analisada, vir gradualmente a sentir-se cada vez menos à mercê de forças desconhecidas, tanto internas quanto externas, e cada vez mais capaz de lidar à sua própria maneira com as dificuldades inerentes à natureza humana, ao crescimento pessoal e à gradual obtenção de um relacionamento maduro e construtivo com a sociedade.


Donald Winnicott

Sonhos Programados


segunda-feira, 24 de março de 2014

O Bicho Verde


Há três conceitos que por vezes se confundem: ciúme, cobiça e inveja. Mas ciúme, é não querer perder o que se tem, cobiça é querer o que o outro tem, e inveja é não querer que o outro tenha. Esta deriva do latim invidia, que quer dizer “olhar com malícia”, o que explica a crença popular do “mau-olhado”. Traduz-se como: “eu até posso nem ter nada desde que tu também não tenhas.” 
Dos três, talvez a inveja seja o mais difícil de admitir. É difícil de admitir porque remete para um desejo que não tem directamente relação comigo ou com algo eu gostaria de manter (ciúme) ou ganhar (cobiça), mas sim com aquilo que eu desejo que o outro perca. Talvez a inveja seja profundamente difícil de admitir porque a maioria tem alguma vergonha de reconhecer que retira prazer da desgraça alheia. Além disso, a cultura judaico-cristã penaliza severamente a inveja. Considera-a um pecado capital, embora seja talvez o único pecado que na realidade é totalmente inútil, ao contrário da gula ou da luxúria. Com a gula e com a luxúria eu tenho algum tipo de prazer. Com a inveja, pelo contrário, apesar de poder sentir um gozo imediato perante as perdas dos outros, na maioria das vezes, isto é, no dia-a-dia, sinto ódio das suas vitórias. Não só das conquistas alheias se tem inveja pois, por vezes, a simples paz de espírito ou serenidade de alguém pode ser motivo de inveja, mesmo que não possua nada mais que isso.
Porque se inveja, então? Há quem nem o saiba, porque a inveja pode estar mais ou menos consciente (creio que muitas pessoas escondem habilidosamente de si mesmas que invejam os outros), mas é alimentada por sentimentos de inferioridade e insegurança, sensação de abandono ou injustiça, sensação de incapacidade, vazio interior, frustração, como se fossem afluentes de um grande rio composto de egoísmo, raiva e ódio, em diferentes medidas. Por vezes, é tão dissimulada ou mesmo inconsciente que nem é expressada de forma directa ou evidente, contudo, sentimos um mal-estar em certa presença, um olhar estranho ou um tom de voz incoerente. Também aparece sob a forma de bisbilhotices, críticas (normalmente destrutivas) ou conselhos traiçoeiros. 
Quem inveja, sofre, mesmo que não o saiba ainda. É uma espécie de amargura invasiva, qual veneno que corre nas veias, e possui um carácter destrutivo, não para os outros mas principalmente para o próprio, que azeda, mirra e definha. Admitir a inveja será uma confissão de inferioridade pois o mecanismo responsável é a comparação sistemática entre a pessoa e os outros, comparação, essa, em que a pessoa se sente sempre em plano inferior. No fundo, quanto menos me basto a mim próprio, mais olho para os outros. Quanto menos satisfeito estou com a minha vida, mais observo a vida dos outros. Logo, quanto maior for o vazio, maior a inveja e por isso o melhor remédio contra ela é ter uma vida cheia de nós próprios, construir um destino que nos preencha e sermos plenos de amor-próprio, pois só quem se ama a si mesmo poderá amar o próximo.

terça-feira, 18 de março de 2014

Fugas

Abandona o bulício urbano por um dia que seja. Repara como longe do ruído é mais fácil escutar o que diz a tua alma. Todos os dias a voz cá dentro tenta dar-nos recados que não ouvimos. 

- Fala agora. Tenho tempo e não há barulho. Estou aqui.

Abandona o bulício urbano por um dia que seja e, de preferência, escolhe um local onde o teu olhar se possa espraiar. Contempla. 

- O que vês?
- Possibilidades infinitas.




segunda-feira, 10 de março de 2014

Penso, logo Existo

Le Penseur - Auguste Rodin
 “Penso, logo existo”, disse Descartes. O pensamento será talvez a função mais distintiva da espécie humana. O acto de pensar é o que nos confere existência, pois mesmo quando impedidos de falar ou agir, a possibilidade do pensamento ainda nos salvaguarda uma identidade e uma mente que funciona produtivamente. Assim, em primeiro lugar, a capacidade de pensar implica que sabemos mais ou menos quem somos, ou pelo menos, que estamos a caminho da nossa verdade. O que pode ser assustador. Pensar sobre as coisas (as nossas, as dos outros, as boas, as más, as que já foram e as que estão por vir) conduz-nos por vezes a caminhos de dúvida, sofrimento e angústia. Pensar implica também suportar algumas questões que ficam e ficarão sempre sem resposta.

Entre nós, seres humanos, uns seremos possuidores de uma personalidade mais analítica, utilizando a função do pensamento sem hesitar, enquanto outros não pensam muito ou não pensam de todo, quer porque não conseguem ou porque simplesmente não querem. São pessoas que preferem levar a sua vida sem questionar muito os “porquês” e os “comos”. É que viver praticando a análise de nós mesmos, dos outros e do que nos envolve, é um processo simultaneamente gratificante e frustrante. E embora seja o único caminho que produz expansão e evolução, para alguns a ansiedade que a reflexão despoleta é absolutamente insuportável.
Mas atenção: há uma confusão frequente entre pensamento e ruminação. Pensamento não significa perder dias a ruminar no mesmo assunto, em loop mental e sem sair do mesmo sítio. Pensamento é tentar procurar outra compreensão, ver de outra forma. Pensar é questionar, é algo criador e transformador, um processo que permite andar para a frente em vez de ficar estagnado no mesmo lugar. Mas por vezes, o que dói é precisamente sair desse local tão familiar e pôr em causa tudo aquilo que era dado como adquirido. Recordamos Florbela Espanca que, no seu poema Rústica, dá voz a um desejo quase infantil de poder ser uma mulher de pensamento mais simples e de alegrias banais: “Ser a moça mais linda do povoado./ Pisar, sempre contente, o mesmo trilho(…) Deus, dai-me esta calma, esta pobreza!/ Dou por elas meu trono de Princesa,/ E todos os meus Reinos de Ansiedade.” Pisar todos os dias o mesmo trilho, sem grandes preocupações, podendo encontrar nessa rotina mecânica a tranquilidade e a satisfação, era o que desejava Florbela. Porém, pese embora os seus “reinos de ansiedade”, Florbela teria, em simultâneo, noção da “pobreza” desta existência.
Se para uns é suficiente comer, trabalhar e dormir, para outros pensar é uma função incontornável. Queiramos ou não, somos dotados de um “aparelho de pensar” e se essa função foi estimulada durante o nosso desenvolvimento, dificilmente podemos fugir da consciência que em nós cresceu e habita. Por outro lado, a verdade é que fugir do acto de pensar não é melhor solução. É como se, cá dentro, soubéssemos intuitivamente certas coisas que não queremos reconhecer. E assim, mesmo não pensando de forma consciente, deliberadamente, a verdade encontra forma (por vezes mais violenta) de irromper pela nossa vida, muitas vezes abrindo caminho pelo adoecer do corpo. Porque pensar é procurar a verdade. E a verdade, por mais que doa, vem sempre ao de cima. 

terça-feira, 4 de março de 2014

Pedrinha (Existo porque fui amado)

O que promove, orienta e suporta a relação é o bonding (ligação) da mãe ao filho e não o attachment (vinculação) do bebé à mãe. A relação é, predominantemente, da responsabilidade do animal alfa. De igual modo, na cura psicanalítica obedecemos à regra da precessão e primazia do investimento do analisando pelo analista. Este é um dos princípios basilares da arte e da técnica.


António Coimbra de Matos (in Vária. Existo porque fui amado)