terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Um pouco mais


O melhor do tempo que passa é a transformação que deixa. O melhor de chegar ao fim do ano é sentirmo-nos e sabermo-nos diferentes do seu início. Diferente não é nem melhor, nem pior, nem mais certo, nem mais errado. Não se trata de um juízo de valor nem de uma corrida para chegar a lado nenhum. Diferente é o que é: diferente. É um caminho. Um caminho que se faz, fazendo. Que bom quando cada ano é um pouco mais. Um pouco mais de vida, um pouco mais de mundo. Um pouco mais de história. Um pouco mais de gargalhadas, de encontros, de lágrimas, de despedidas. Um pouco mais de Verão, um pouco mais de Inverno. Um pouco mais de mim, um pouco mais dos outros, um pouco mais de mim nos outros e um pouco mais dos outros em mim. Por vezes um pouco mais de alegria e serenidade, outras vezes um pouco mais de angústia e sofrimento. Seja o que for, é sempre e precisamente o contrário de estagnação. É a constatação do fluxo constante da vida e dos seus vai-e-vens. Obrigado 2014! Que venha 2015!

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

O melhor presente de Natal


Os presentes no Natal fazem parte da nossa cultura. São símbolos de afecto e de pertença, possivelmente associados ao gesto dos Reis Magos, acarretando uma tradição de celebração da família. Mas ao longo dos tempos o ritual acabou confundido e contaminado por fortíssimos apelos ao consumo.
Se isto é verdade entre adultos, mais confuso é para as crianças, obrigando-nos a estar atentos ao que se passa dentro delas e ao que lhes estamos a transmitir, enquanto modelo para a vida. A criança, cada vez mais exposta ao meio consumista, vai expressando o seu desejo de receber um certo presente, mas cabe-nos a nós ter a sensibilidade de decifrar se o que é pedido é realmente uma escolha sua, algo que lhe trará verdadeira satisfação, ou uma imposição/influência do ambiente envolvente (media, grupo de pares, etc.). Ou seja, é importante perceber qual a real motivação da criança quando pede determinado presente.
O que acontece frequentemente é que a criança nem sempre pede um presente que seja verdadeiramente importante para si. Repare-se que não é invulgar a criança ir mudando de ideia a cada anúncio que passa na televisão, ou mesmo consoante aquilo que alguns amigos pediram como presente. Mas esta dúvida é, na verdade, uma falsa dúvida. É fruto do bombardeamento de informações que ela não tem maturidade emocional para gerir, ou fruto da dificuldade em se conhecer a si mesma e aos seus desejos, imitando os outros em alternativa. O que acontece depois é que, ao receber o presente, percebe que afinal não o queria, e este acaba por ser posto de lado.
O melhor presente de Natal (ou de outra coisa qualquer) é um presente que vai ao encontro do desejo autêntico da criança e, em geral, esse desejo está relacionado com os seus afectos mais íntimos e com a sua fase de crescimento (e respectivos desafios). Assim, um menino que tem vários medos pode pedir um conjunto de tanques e soldadinhos, uma menina que começou a montar a cavalo pode pedir uma boneca cavaleira, ou uma criança que acha que ser cientista pode pedir um microscópio. O exemplo não importa, mas ilustra que, em todos os casos, o valor do presente em questão, para a criança, não é aleatório, nem financeiro (pedir o presente mais caro), nem uma imitação, mas sim emocional. Diz respeito às suas vivências: sejam medos, descobertas ou desejos. Isso é o que deve conter num presente. O desejo deve ser o desejo da criança e não o desejo do mercado ou de quem lhe dá um presente (ex: quero que o meu filho seja médico portanto vou oferecer-lhe um estojo médico).

E se, no fim de tudo isto, o presente não é possível por qualquer razão, basta dizer à criança sobre a impossibilidade real de oferecer aquele presente. A vida é feita de limitações e são esses limites que nos ensinam a esperar e que nos permitem sonhar e desejar. 

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

A Beleza das 'Cousas'


Se o que é belo para uns nunca será belo para outros, sendo a beleza um dos conceitos mais subjectivos e voláteis da humanidade, o que é o belo senão aquilo que nos faz felizes? O poema — Alberto Caeiro, com certeza. 

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

As Fronteiras da Intimidade


Fala-se muito da importância de colocar limites às crianças. Esta expressão ficou bastante associada à imposição de regras, deixando na penumbra outro tipo de limites, tão ou mais importantes: a intimidade e a privacidade de cada um. A intimidade e a privacidade são dois conceitos importantíssimos à estruturação psíquica do sujeito, duas fronteiras básicas da individualidade do ser humano.  
Dentro da mesma casa, ou seja, partilhando espaços físicos, há tendência a confundir o espaço de cada um. Por vezes, os adultos não sabem como é importante ter alguns cuidados, invadindo o espaço das crianças, outras vezes, permitindo em excesso que a criança invada o seu espaço. Se as crianças pudessem defender-se, diriam então: “Pressinto que há coisas minhas que não te dizem respeito e que há coisas tuas que não quero saber; que há momentos e lugares meus onde não podes entrar e momentos e lugares teus que não quero presenciar. Eu ainda não sei muito bem o quê mas tu, que és crescido, ajudas-me com esta tarefa?”
O filtro tem de ser, em primeiro lugar, uma competência dos adultos. É importante respeitar a intimidade da criança, ensinando-a, aos poucos, a reservar (e preservar) tudo aquilo que é seu. Como se ensina isto? Pelo exemplo, como tudo o resto. Se uma criança está na casa de banho, não há que irromper pelo espaço sem pedir licença. Criança ou não criança, o respeito é o mesmo. E antes de entrar no quarto, não custa nada bater à porta e perguntar: “Posso?” É que, por vezes, os adultos têm tanta necessidade de controlar as crianças que as desrespeitam profundamente. Quantos pais já terão lido o diário das suas meninas? Quantos pais já terão espiolhado os telemóveis dos seus filhos? Quantos pais já terão desejado ser confidentes absolutos dos filhos? Não havendo qualquer indício de problemas, para quê e porquê fazê-lo?

Também os pais devem reservar para si aquilo que é seu. Mas quando confrontados, muitos adultos respondem: “Eu também não me importo que o meu filho entre no meu quarto sem bater, nem que queira saber de tudo da minha vida. Não tenho nada a esconder.” Tudo bem. Mas não acham isso estranho? Não se trata de esconder, mas de valorizar o que é meu e poder distingui-lo do que é do outro. De perceber que estas confusões em nada medem o amor e os afectos, apenas revelam tentativas de controlar angústias que ora são dos adultos, ora das crianças, e que é preciso contê-las de outra forma. Que saibamos que amar o outro é respeitar a sua individualidade, permitir-lhe uma existência diferenciada. Para isso, lutamos contra os nossos medos, se preciso. Pelo direito a não se deixar invadir e respectivo dever de não invadir também.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Olívia


Olha, vou começar! Espero que gostes! Era uma vez uma menina chamada Olívia que vivia num grande palácio. Ela não era uma princesa mas era uma menina muito rica, filha de uns pais muito ricos. No palácio havia todos os luxos possíveis e imaginários e a Olívia passava os seus dias entre cortinados de cetim e porcelanas chinesas, escondendo-se e encontrando-se atrás de todos os objectos que pudessem servir de esconderijo. Sim, não me interrompas, ela é que se encontrava a ela própria porque não havia ninguém à procura dela! Deixa-me continuar a história. Um dia a Olívia cansou-se de se procurar a si mesma e começou a criar teatros de marionetas. Havia três personagens, três colheres de pau roubadas da grande cozinha e transformadas no pescador, na mulher do pescador e na filha do pescador. Mas a Olívia só tinha duas mãos para as três colheres de pau e a plateia dos seus espectáculos (todos os bonecos que tinha) não era muito participativa e também isso acabou por perder a graça. Por esta altura, a Olívia descobriu os livros. Os livros tornaram-se a sua terceira grande companhia. Pelas histórias dos outros a Olívia integrou a sua própria história e coloriu os espaços em branco que ia encontrando. Sim, a Olívia assim não se sentia só. Xiu, deixa-me continuar. Foi assim que a Olívia foi crescendo, graças à sua capacidade de criar e colorir o seu próprio mundo, tão fisicamente despido e tão simbolicamente rico. Foi assim que foi crescendo até poder descobrir o mundo. Até perceber que fora do grande palácio existia um sem fim de possibilidades e de plateias e de olhos interessados em si. E foi quando se tornou mais parte do mundo que se sentiu mais zangada. Não, não é nada estúpido. Foi porque cá fora começou a comparar a vida no palácio com outras vidas e as pessoas do palácio com outras pessoas e percebeu que tinha perdido coisas importantes pelo caminho, não te parece evidente? Desculpa, não queria ser rude. Tomara eu que me fizessem tantas perguntas como tu fazes e que se interessassem tanto como tu te interessas. Não, claro que não estávamos a falar de mim, estávamos a falar da Olívia! Eu só estou a contar uma história!

Give Me Truth


Verdades esperam-nos, serenamente, ao longo do caminho. Não têm a nossa urgência e por isso deixam-se estar, sabendo que tudo tem um tempo mesmo que esse tempo nos pareça fora de tempo. O nosso tempo é diferente do tempo do Universo. Não se sabe muito bem porquê mas é, quase sempre, assim. Pois que seja. Que tarde, mas que chegue, essa coisa da verdade. Outras vezes ela já se tinha mostrado, em sinais de fumo à beira da estrada, mas nós, distraidamente ou propositadamente, não vemos. Mas aí o problema da verdade já não é o tempo que ela demora mas sim a nossa incapacidade de olhar de frente para ela. Pois que seja. Que se olhe tarde, mas que se olhe, por fim, para essa coisa da verdade. Como dizia Thoreau: "rather than love, than money, than faith, than fame, than fairness... give me truth". Pois tudo o resto, quando não assenta em verdade, não tem validade.

― Fotografia de Finn Beales, in Mývatn, Islândia

domingo, 23 de novembro de 2014

O conflito de gerações


Há algum tempo a capa da revista Time apresentou-nos a “Me Me Me Generation”, categorizando a juventude actual como extremamente narcísica, individualista e egocêntrica. Rapidamente se instalou a polémica perante essa capa que correu o mundo. Em defesa dos jovens se diga que, por exemplo, é mais comum desenvolverem comportamentos pró-ambientais do que um indivíduo de 50 ou 60 anos. Sendo o planeta responsabilidade de todos, quem serão os mais individualistas? Há na juventude, claramente, narcisismo e egocentrismo, o que é diferente de individualismo. É que os dois primeiros estão intimamente ligados ao processo de crescimento: narcisismo, porque a identidade própria está em construção e necessita de ser reafirmada; egocentrismo, porque a imaturidade torna difícil entender as coisas sob outros e diferentes pontos de vista que não o próprio. Mas individualismo, atitude de não se preocupar com os outros, será uma acusação injusta, pois se há coisa que caracteriza a adolescência é a sensibilidade social e a busca de justiça. Vendo bem, quantos adultos não são igualmente narcísicos e egocêntricos, tendo ficado suspensos no seu caminho de crescimento pessoal?
Acusações mediáticas à parte há sempre tensão entre gerações. É com frequência que opiniões públicas ou privadas a denegrir as gerações mais novas se fazem ouvir. Porque se atacam tanto os jovens? Que os jovens possam criticar os “velhos” até se entende, já que são eles os “miúdos”, inexperientes e justiceiros, para quem é tão fácil apontar o dedo. Que os adultos respondam na mesma linguagem é que se torna mais difícil de entender, pois deveriam ter algum entendimento sobre o que ficou para trás. Será tão fácil esquecer o quanto as gerações sempre chocaram entre si? Será tão difícil lembrar como os jovens de antigamente também se diferenciaram dos seus pais? Tudo o que é diferente é estranho, mas não necessariamente mau. O futuro o dirá.

Todas as gerações são diferentes das gerações que as precederam. Se o mundo está em permanente transformação como poderia ser de outra maneira? A verdade é que o ser humano tem alguma dificuldade em responsabilizar-se pelo que acontece em seu redor mas somos nós quem define a direcção em que se move o mundo. Para falar sobre jovens, teremos de sempre de falar um pouco sobre quem foram os pais dos jovens e de que cultura de valores foi criada para eles, seja em que época for. Se não gostamos dos jovens que criámos teremos sempre de fazer um mea culpa sobre o mundo que construímos para eles.

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Das turbulências


Há dias que são como mares revoltos. Nesses dias, as emoções são fortes. Porque tal como a agitação marítima traz à superfície coisas que habitualmente estão no fundo do mar, a turbulência emocional invoca o que está no mais profundo de nós, misturando tudo à superfície. Se o mar está agitado, mais cedo ou mais tarde, enquanto combatemos as ondas e as correntes, vêm ao de cima os medos mais remotos, as feridas mais antigas e as memórias mais bem guardadas, fazendo-nos sentir ainda mais desamparados face às intempéries. O pânico pode tomar conta. Felizmente, temos também acesso aos nossos recursos e bóias de salvação que fomos armazenando durante o caminho. Afectos positivos, aprendizagens e competências de toda a espécie que mobilizamos para combater tudo o que de mau nos atormenta no meio da tempestade. Na certeza, sempre, que nenhuma tempestade dura para sempre e que a impermanência das coisas é, nestes momentos, uma característica muito útil da condição humana. Depois da tempestade vem a bonança. Isso sim, invariavelmente.

Wise Up

De olhos e mente bem abertos para as aprendizagens e constatações necessárias. 

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Tudo aquilo que pedires


Tem estado na moda uma tendência ligeiramente omnipotente que diz que temos tudo aquilo que pedimos. Diz que de cada vez que nos erguemos, o Universo ergue-se connosco. Começou, talvez, com 'O Segredo' e proliferou como cogumelos. É uma abordagem da vida mais 'mágica', com forte ligação a correntes energéticas e espirituais. Se é exactamente assim ou não, não posso saber ao certo. O que eu sei e concordo é que somos, sim, imensamente maestros da nossa vida e que a sinfonia também vai, sim, correndo segundo indicação da nossa batuta. E as teorias dizem: Pede alegria, terás alegria. Pede sofrimento, terás sofrimento. Pois aqui entra a psicanálise: o problema disto tudo é que nem sempre temos consciência daquilo que andamos a pedir. Por exemplo, o conceito e fenómeno de 'compulsão à repetição' diz-nos que apresentamos uma tendência inconsciente para o regresso às situações traumáticas da nossa vida, como tentativa de as resolver internamente/emocionalmente. Como se quiséssemos corrigir uma experiência passada. Não damos por isso. São coisas que se passam aquém da nossa consciência. Não é algo que esteja sujeito a racionalização. Só quando, a dada altura, em vez de nos queixarmos do nosso eterno azar (também lhe chamamos karma), nos sai da boca ou do pensamento algo do género: 

— "Porque é que me rodeio sempre das pessoas erradas?" 


Ou então pensamos,


— "Se eu quero tanto ser independente porque é que continuo a depender dos outros?"


Ou ainda,



— " Se eu quero tanto ter uma relação sólida porque é que não consigo manter um relacionamento?"

Este é o primeiro passo em direcção à tomada de posse na nossa vida. Ou seja, enquanto não nos apercebermos que estamos presos a um padrão de funcionamento, queremos conscientemente ser felizes mas estamos inconscientemente a retornar ao lugar da dor. Enquanto maestros das nossas vidas, o nosso trabalho é questionar porque é que a orquestra está desafinada. Porque é que certas coisas nos acontecem. Com responsabilidade. Com coragem. É um dos trabalhos em psicoterapia e em psicanálise. Trazer à luz o que está no escuro. Somos, de facto, muito responsáveis. Muito mais responsáveis que o azar ou a sorte. Se calhar temos realmente o que pedimos. Então a questão que fica é: saberemos realmente o que andamos a pedir?

Os Grandes e Fortes

Big Tired Dog | Kyle MacKillop on VSCO Grid

Os grandes e fortes também precisam de colo. Os grandes e fortes não são sempre grandes e fortes. Ninguém pensa nisto mas os grandes e fortes normalmente nunca tiveram sequer a hipótese de serem pequenos e frágeis. Fizeram-se grandes e fortes pisando o seu lado mais pequeno e frágil. Fingindo que ele não existe pois não podia mesmo existir. Os grandes e fortes estão habituados a cuidar dos outros e por isso não podem dar-se ao luxo de precisar de alguém. É que ser pequeno e frágil é quase uma espécie de luxo. Pois é, os grandes e fortes também precisam de colo. Às vezes, precisam mais do que qualquer outro.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Os outros em nós e nós nos outros






I carry your heart (I carry it in 
my heart)

Assim começa um dos poemas mais bonitos de E.E. Cummings (1952). E a seguir diz:


i am never without it (anywhere
i go you go, my dear; and whatever is done
by only me is your doing, my darling)

No fundo é tão simples quanto isto, não é? 
Quando o amor do outro mora dentro de nós, nunca estamos sós. Em psicanálise chamamos-lhes objectos internos. Mas o E.E. Cumming tem mais jeitinho. E é assim que aguentamos todas as ausências e separações e perdas. 

E depois eu acho ainda que este poema fala de outra coisa. Fala também daquilo que é o meu trabalho, fala de trazer comigo (e dentro de mim) tantos corações que se cruzam comigo. 

I carry your heart (I carry it in 
my heart)

De me lembrar das pessoas tantas e tantas vezes fora do setting. 

(anywhere
i go you go, my dear;

E ainda do quanto elas nos ajudam a ajudá-las. 

whatever is done
by only me is your doing, my darling)

Tantos corações que carrego comigo.
Tão bom!

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A Droga da Obediência


Em todo o mundo, pelo menos cerca de dez milhões de crianças devem receber a prescrição para tomar comprimidos à base de metilfenidato, uma substância química que actua como estimulante leve do sistema nervoso central, elevando o seu nível de alerta, como uma espécie de anfetamina. O fármaco incrementa os mecanismos excitatórios do cérebro, o que resulta numa maior concentração, coordenação motora e controle dos impulsos. Tudo isto acontece por causa de um bicho-papão chamado Perturbação de Hiperactividade com Défice de Atenção (PHDA), vulgarmente designada pelo seu nome do meio, hiperactividade.
Reza a história que as crianças com PHDA apresentam um padrão comportamental caracterizado, essencialmente, por um persistente défice de atenção, excesso de agitação motora e, eventualmente, presença de impulsividade. A hiperactividade está nas bocas do mundo. É fácil perceber porquê, já que o “diagnóstico” de hiperactividade é um rótulo altamente maleável e sobretudo conveniente, encaixando como uma luva nas crianças de hoje. Em boa verdade, parece que dá jeito esquecer que, em primeiro lugar, as crianças são naturalmente agitadas e impulsivas, em segundo lugar, que são por vezes pouco regradas ou mesmo mal-educadas e, em terceiro lugar, que normalmente a agitação motora e incapacidade de concentração são um sintoma de algum mal-estar psicológico que exige uma leitura do que está por detrás.
Assim, para professores e famílias em pânico e sem tempo para auscultar os sintomas do corpo, existe o metilfenidato. Os médicos alinham e a indústria farmacêutica agradece. Mas o efeito do metilfenidato nas pessoas está longe de ser completamente pesquisado e nada se sabe sobre suas consequências a longo prazo. Contudo, é receitado precisamente a crianças pequenas e, frequentemente, ao longo de vários anos. O mais curioso é que poucos parecem importar-se com a constatação óbvia de que a dita “doença” não é curada através do uso de medicação, mas apenas mascarada. O que importa é as crianças não maçarem muito no momento presente e aprenderem tudo o mais rápido possível, independentemente de "gritarem" por todos os lados que não estão capazes para aprender. E assim que a aplicação do medicamento é suspensa, os sintomas reaparecem imediatamente, e muitas vezes até surgem novos sintomas, mais graves.

Hoje, muitos cientistas, psiquiatras e neurobiólogos já assumem que o uso do metilfenidato foi vantajoso para muita gente, pois existindo uma PHDA, não se responsabiliza quem quer que seja e retira-se um peso aos pais, educadores e professores. Como profundo reflexo dos tempos modernos, se algo não funciona bem, ingere-se um comprimido. Transformou-se em patologia aquilo que remete, no fundo, para questões familiares e culturais. Ao medicarmos os sintomas, excluímo-nos da responsabilidade diante dos novos desafios na educação das nossas crianças. Escutar e observar o que cada criança quer dizer, através de um comportamento tido como desajustado, será o único caminho para não silenciar os conflitos inerentes à construção da vida. 

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Erosão



Antes de se ser areia, é-se seixo. 
Cada um com sua cor e sua forma. Depois, vem a água, vem o vento, vem o sal, vêm todos os agentes de erosão, e os seixos vão perdendo tudo o que é tão seu e que por isso os distingue uns dos outros. Tornam-se, por fim, microscópicos e indistinguíveis grãos de areia.
Antes de se ser areia, é-se seixo. 

E ser seixo é muito melhor que ser grão de areia.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Leveza

Tamara de Lempicka - Beautiful Rafaela

Ceely, uma mulher volumosa de vinte e quatro anos com os olhos profundamente negros e olheiras a combinar, estava inchada na proporção das tareias que tinha levado. Durante os nossos primeiros encontros, ela esperava sentada na minha sala de espera e, quando eu a ia buscar para a nossa sessão, ela sentava-se e agarrava-se com força aos grossos braços de cerejeira da cadeira do consultório, acalmando-se lentamente. (…) Numa voz que me fazia lembrar o delicado chilrear de um pequeno e assustado pássaro ferido, Ceely espontaneamente referiu que estava “para lá dos 150 quilos” e que era assim desde há anos. Rapidamente acrescentou que tinha uma mãe que “a amava de verdade”. Depois, como que concluindo o discurso, acrescenta: “Excepto quando a faço ver cores”. Estas palavras intrigantes, senão mesmo enigmáticas, tornaram-se o assunto central da terapia de Ceely.
O pai de Ceely não era um homem forte nem enérgico e encolhia-se perante as fúrias da sua esposa. Por isto mesmo, oferecia pouca ou nenhuma protecção e consolo quando o alvo destes ataques era a filha. O relacionamento especial que Ceely tinha com o pai enfurecia a mãe. Tudo e mais alguma coisa irritava a mãe. Ceely, porém, era o seu alvo favorito, por ter uma personalidade parecida com a do pai e uma aparência física oposta à da mãe. Ceely era gorda e silenciosa. A mãe era faladora e, embora os anos já lhe pesassem, ainda mantinha as curvas sedutoras dos seus anos de modelo.
A mãe de Ceely desejava obter a atenção que ao longo do tempo ela mesma tinha perdido com as suas contundentes palavras de ódio. A sua mãe odiava a vida que tinha e culpava toda a família pela sua infelicidade, e Ceely, por ser a mais nova, tinha de a salvar desta vida atormentada. Ceely devia tornar-se na super modelo e vedeta de anúncios que a sua mãe não tinha conseguido ser devido ao seu mau temperamento e à sua violência. Se ela não tinha conseguido conquistar a luz dos holofotes, tinha de ser Ceely a fazê-lo.
Mas o peso de Ceely era o obstáculo directo às aspirações calculistas da mãe. Por isso, cada vez que a mãe via Ceely entrar ou sair do chuveiro, era como que um advertência e uma lembrança visual, alertando-a de que o seu sonho estava em risco. Nessa altura, agarrava em bocados da pele de Ceely e espremia-os o mais que podia. Estava literalmente a tentar remover a gordura do corpo de Ceely, gritando: “Se tu não o perdes, eu tiro-to com as minhas próprias mãos.” A mãe estava a ver “cores” – era assim que Ceely havia descrito este comportamento da mãe, uma frase que eu interpreto como sendo o disfarce das fúrias psicóticas daquela.
Ceely continuou a descrever maneiras igualmente extremas, embora talvez de uma violência menos evidente, empregues pela mãe com a intenção de mudar o seu corpo. Clisteres, laxantes, períodos de jejum forçado durante dias a fio (…) Mesmo assim, Ceely ganhou peso. Quanto mais a mãe tentava emagrecê-la, mais gorda ela ficava.
Todas estas experiências foram contadas pela voz vazia e inexpressiva de uma criança que há muito deixara de estar no seu próprio corpo. As palavras não correspondiam nem se ligavam aos traumas que ela descrevia. Em vez disso, estavam marcadas pela resignação e ausência. Quanto mais ela falava, menos vida havia para ela sentir.
Depois de cerca de seis meses de terapia em que houve muito pouco diálogo, perguntei a Ceely porque me tinha contado a sua história e o que é que ela esperava de mim. A minha questão apanhou-a de surpresa e ela respondeu-me que não sabia. Também me deu a impressão que me via pela primeira vez em vários meses e comentou que eu parecia perturbado. Com um olhar de pânico que atravessava a sua cara, perguntou-me se eu estava zangado com ela, apontando para a minha camisa azul molhada.
Eu respondi: “Não, a verdade é que você me faz lembrar uma bela adormecida. Não estou zangado consigo, mas sim com aquilo que lhe foi feito.” (…)
Ceely contrariou: “Eu não sou nenhuma beleza. Você diz que não está zangado comigo, mas está zangado o suficiente para fazer troça de mim.”
Respondi-lhe: “Não a quis ofender. O que eu disse, para mim, é verdade. Acredito que você é uma bela adormecida. Você não o reconhece, pois tem estado demasiado ocupada a proteger-se das agressões da sua mãe. A sua raiva para com a minha observação diz-me que ainda há vida em si e que o feitiço que silencia as suas emoções está prestes a ser quebrado.”
Então, num enredo semelhante ao de tantas outras relações traumáticas que descrevo nas páginas deste livro, Ceely perguntou: “ Como pode criticar tanto a minha mãe? Ela só estava a tentar ajudar-me a ficar mais bonita, magra e atraente. A culpa de nada disto ter resultado e de eu parecer assim é minha. Para além disso, fui eu que a deixei louca.”
O verdadeiro trabalho de terapia de Ceely podia agora começar a sério: escrevendo a sua própria história sem as mentiras, distorções e deturpações que tinha ouvido sobre si mesma durante muitos anos.
 Nos dois anos seguintes, explorámos a relação que Ceely tinha com a sua mãe. Encorajada por mim, regressou várias vezes às cenas que, até então, estavam desprovidas de memória pessoal e, aos poucos, em cada novo recontar, emergiam melhor as suas verdadeiras emoções. O que originalmente vira como sendo ajuda e orientação por parte da mãe, interpretava agora como algo cruel, humilhante, perigoso e traumático.
 (…)
Nos avanços e recuos, descobrimos muitas lições juntos e aprendemos muito mais. Chegámos à conclusão que o perdão é uma decisão própria e que é mais autêntica quando pensada e reconhecida como paralela a emoções contraditórias. Perdoar não é esquecer ou permitir a revogação da responsabilidade por actos de violência ou crueldade. Mesmo sem a expiação da sua mãe, Ceely pôde atenuar a sua influência, recusando-se a desculpar os seus comportamentos, a aceitar a culpa por eles e a continuar a viver na vergonha que lhe fora incutida. Definitivamente, perdoar não é suprimir a ambiguidade, a ambivalência, a raiva, a mágoa ou até mesmo o desejo de justiça.”
(…)

Richard Raubolt in Cenários Psicanalíticos do Trauma

domingo, 5 de outubro de 2014

Gesto Espontâneo


Enquanto não nos conhecemos ou não nos damos a conhecer reunimos à nossa volta relações pouco verdadeiras. O que é natural porque assim os outros também não sabem bem quem somos e portanto também têm o direito de se enganar. Uma das melhores consequências de nos encontrarmos e de nos assumirmos tal e qual como somos é o facto de vermos afastar-se quem então andou por perto ao engano. Se queremos viver relações mais autênticas, as primeiras perguntas a fazer são: Sei quem sou? Estou a mostrar-me como sou? E aí entramos num processo de libertação de tudo o que não interessa, não só por fora como por dentro. Cá dentro, entendemos por fim o que significa isso da 'liberdade de ser'. O gesto espontâneo, como diria Winnicott. Não há maior alegria que a de nos reconhecermos na nossa forma mais genuína e praticar a nossa verdade, não mais nos importando com o julgamento alheio. Lá fora, um pouco mais de certeza de que quem está, está de verdade e em verdade. O ciclo é simples: abrir o coração e assumir a nossa verdade atrai mais amor e mais verdade; a verdade de saber que quem está por perto nos conhece, nos ama e nos respeita. Já não há grandes enganos a recear. Ficam os que querem manter-se por perto e esses, sim, são bem-vindos. Bom domingo!

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Pontes e Muros



Enquanto engenheiros de nós mesmos, ora construímos pontes, ora construímos muros. Pontes ligam. Pontes são elementos de comunicação, colaboração e relação. Pontes são apertos de mão, são abraços. Pontes funcionam como um sim. Porém, nem só de pontes se faz o Homem. Os muros permitem-nos estabelecer fronteiras. Muros são limites, são critérios, são travões. Muros são um "chega para lá". Muros funcionam como um não. Oscilamos (e ainda bem) entre pontes e muros, entre a aliança e a ruptura, entre o sim e o não. O instrumento que nos ajuda a aferir o que é necessário construir em cada momento tem, para mim, nome de livro: sensibilidade e bom senso.

Nutrir

In 'Vária. Existo porque fui amado' de António Coimbra de Matos

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Pedir Desculpa: Fácil, Difícil ou Impossível?


Pedir desculpa nem sempre é fácil. É que este acto acarreta ramificações psicológicas que vão além da palavra em si. Embora possamos justificar a relutância em pedir desculpa com orgulho, por norma há uma dinâmica psicológica muito mais profunda e complexa.
Ao contrário do que parece, recusarmo-nos a pedir desculpa não reflecte uma “personalidade forte” mas sim, pelo contrário, um esforço para nos protegermos das nossas fragilidades e de angústias fundamentais (conscientes ou inconscientes). Comecemos:
  1. Admitir que se fez algo errado pode ser sentido como ameaçador quando se confunde acção e carácter: como se aquilo que fazemos definisse totalmente quem somos. Por exemplo, confundir um erro ou uma negligência com estupidez ou ignorância. Nestas circunstâncias, quando se pensa desta forma, as desculpas representam naturalmente uma grande ameaça para o nosso sentido básico de identidade e auto-estima.
  2. Pedir desculpa pode abrir as portas ao sentimento de culpa ou ao sentimento de vergonha. E enquanto a culpa faz-nos sentir mal relativamente às nossas acções, a vergonha faz-nos sentir mal em relação à nossa pessoa, o que faz dela uma emoção muito mais tóxica que a culpa. Mais uma vez, encontramos aqui uma confusão entre acção e carácter.
  3. Embora o pedido de desculpa seja uma oportunidade de resolver um conflito, quem não consegue fazê-lo normalmente receia o inverso: que abra um precedente para outras acusações e mais conflitos. E embora haja pessoas que efectivamente não aceitam o pedido de desculpa como reparação, as pessoas mais saudáveis não utilizam um momento de sinceridade e humildade para humilhar ou enxovalhar o outro, pois aí o problema já não é de quem pede desculpa, mas sim de quem não sabe aceitá-las.
  4. A dificuldade de pedir desculpa esconde ainda o receio que fazê-lo signifique assumir a responsabilidade total do assunto e libertar a outra parte do seu quinhão de responsabilidade. Aqui, há uma confusão entre as partes e o todo. Uma história tem sempre dois lados e cada um deve olhar para o seu.
  5. A recusa em pedir desculpa é, ainda, uma forma de manter as emoções sob controlo. Há o receio que, ao “baixar a guarda”, as defesas psicológicas se desmoronem e abram as portas a uma cascata de sentimentos desconfortáveis. Mas a verdade é que, quanto mais nos abrimos perante o outro, quanto mais honestos e autênticos formos, mais saudáveis nos tornamos, e mais saudáveis as relações em nosso redor. Viver de espada em riste é um tremendo cansaço e uma ardilosa armadilha.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

No fim vai tudo dar ao mesmo


"Eu penso assim. Eu penso assim. Mas quero perceber o que tu pensas. Eu sinto assim. Mas quero ouvir o que tu sentes. E tu, queres saber o que eu penso? Queres saber o que eu sinto?" É que uma das poucas certezas que podemos ter é que poucas coisas são certas. Por 'certas', entenda-se, verdades absolutas. Exceptuando talvez o mundo matemático (ciência dita exacta em que 2 + 2 são sempre 4). Tirando isso e pouco mais, a leitura que fazemos da vida, das pessoas e das situações é apenas a nossa leitura. Por mais objectivos que tentemos ser, ela é sempre fruto de quem somos e do que vivemos. Dos 'óculos' que usamos. É, por isso, preciso cada vez mais interesse e respeito pela opinião do outro ao invés de viver em campos de batalha entre o que eu penso e o que tu pensas, o que eu sinto e o que tu sentes. Entre o 'certo' e o 'errado'. O que é isso de querer ter razão? Os conflitos surgem da incapacidade de ouvir e entender a perspectiva do outro. É preciso respeito. E depois, já agora, flexibilidade. É preciso descentrarmo-nos dos nossos umbigos. E o mais simples e paradoxalmente complexo de tudo isto é perceber que no fim de contas o que é mesmo preciso é amar o outro. O amor pelo outro implica sempre o respeito pela diferença.


Piscos e Catrapiscos


Os tiques consistem na execução súbita e involuntária de um movimento, de forma repetida. Vêem-se com muita frequência em crianças, mas são também vulgares em adultos. Desde os cabelos aos dedos dos pés, todo o corpo pode ser “usado” para a manifestação dos tiques. Os tiques do rosto são os mais frequentes: piscar os olhos, franzir o nariz ou as sobrancelhas, movimentos da língua ou do queixo. Há também tiques ao nível do pescoço, braços, mãos, dedos e inclusivamente tiques respiratórios (fungar, assoar-se, tossir, assobiar) ou fonatórios (estalar da língua, grunhidos). Na maioria das vezes surgem com a entrada na idade escolar (6/7 anos).

O tique vem aliviar uma tensão, embora o próprio tique seja, muitas vezes, causador de vergonha, culpa e mal-estar, por não ser muito bem tolerado por nós e pelos outros. Isto só acontece quando desconhecemos que o que importa verdadeiramente é perceber que o tique “fala”, ou seja, tem um significado que não pode ser ignorado. É sinal de mal-estar. No início, pode ser apenas uma reacção a uma ansiedade passageira e pode desaparecer tão espontaneamente como surgiu. O que significa que a pessoa foi capaz de ultrapassar algum conflito ou tensão interior. No entanto, no caso de duração prolongada ou substituição recorrente de um tique por outros tiques, é necessário uma abordagem mais aprofundada que permita entender o que corre mal ao nível das emoções. Há algo dentro de si que a criança (ou adulto) não está conseguir entender e/ou resolver.

Assim, a durabilidade do sintoma-tique permite perceber que estamos já na presença de uma estrutura psicológica de natureza ansiosa e não apenas de uma reacção pontual. Por vezes, os tiques representam uma tentativa muito forte de autocontrolo destas emoções difíceis, mas como a tarefa é árdua leva-nos a descarregar o peso de outra forma qualquer. Não é raro que crianças/adultos com tiques manifestem perfeccionismo e rigor na sua conduta. É que algo está aprisionado, mas precisa de sair. Algo está a ser contido a elevado custo dentro de nós e clama por uma forma de ser expressado. Não é tentando reprimir o tique que iremos resolvê-lo, muito pelo contrário. Já há muita coisa a ser reprimida e daí aparece o tique. Há que olhá-lo como uma expressão de ansiedade/conflito e tentar descobrir o seu significado simbólico que será, sempre, variável consoante a história de vida de cada um de nós.

Lambreta


Vem dar uma voltinha na minha lambreta
E deixa de pensar no tal Vilela
Que tem carro e barco à vela
O pai tem a mãe também
Que é tão tão
Sempre a preceito
Cá para mim no meu conceito
Se é tão tão e tem tem tem
Tem de ter algum defeito

― António Zambujo

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Galileu, as Estrelas e a Lua


A propósito da lua cheia de hoje, apresento o desenho de Galileu das fases da lua (1616). 
Galileu, o corajoso, que ao contrário da maioria não temia aquilo que não entendia. A sua paixão pelo conhecimento era maior que o medo do desconhecido. Disse ele: "Amei as estrelas com demasiada afeição para estar temeroso da noite."

domingo, 7 de setembro de 2014

Muitos mergulhos e poucas respostas

O Verão, rapazes ― como disse C. Adams ― 
implica uma insistência nos mergulhos
e uma desistência breve das respostas.
Importante é passar a mão pelas escarpas, 
afagar o pescoço das andorinhas do mar,
verificar o oxigénio no tubinho de plástico
que ajuda a respirar na cala azul turquesa
e permitir que o Senhor ressuscite o sangue
dos espadartes todas as manhãs de 29ºC.
Estas são as tarefas que devem ser realizadas

e ― como disse Adams ― bom mesmo é chegar
ao fim da estação sem nenhuma resposta.

― Matilde Campilho, Um coração que mora dentro do olho do jaguar

sábado, 6 de setembro de 2014

Opinião só não muda quem não tem



Não é raro encontrarmos pessoas incapazes de mudar de opinião mesmo quando os factos mostram que estão enganadas. Outras vezes, não é raro observar-se alguma dificuldade em assumi-lo, quando acontece. Há quem lhe chame teimosia. No entanto, não usamos palas como os burros e, assim sendo, não precisamos de olhar só em frente, podendo utilizar a visão periférica para alargar perspectivas. Tristemente, mudar de opinião está muitas vezes associado a incoerência e a falhas de carácter, contrariamente à citação de Mário Quintana que originou o título desta reflexão. É encarado como falta de personalidade. Como se a personalidade não fosse ela mesma construída ao longo do tempo. Como se o certo fosse mantermo-nos rígidos e formatados do princípio ao fim. Como se, desde o nascimento até à morte, a vida não fosse um processo de transformação e evolução constante.
Quantos educaram os seus filhos de uma forma e hoje gostariam de os ter educado de forma diferente? Quantos começaram a sua vida com determinados ideais políticos e hoje pensam de outra forma? Quantos alteraram as suas crenças religiosas com o passar do tempo? Quantos se envolveram em projectos pessoais e desistiram ao perceber que não iriam a lado nenhum? Ainda bem que assim acontece.
Perante evidências de que aquilo em que acreditamos não nos conduz a bom porto ou já não faz sentido, não é inteligente permanecer no engano. Os factos são soberanos e frequentemente chega a hora de revermos até as nossas mais caras convicções. O apego exagerado às ideias faz-nos portadores de mentes endurecidas e cristalizadas. O pensamento é uma função plástica e pobre daquele que fica confinado a uma crença eterna e inquestionável.
 Por vezes, essa mudança de pensamento parece difícil de concretizar. São demasiadas resistências. Do latim resistentia, que significa oposição, obstáculo, reacção ou defesa. De facto, defendemo-nos da maioria das mudanças. Externas e internas. Persistimos com frequência, até porque temos uma certa tendência à repetição. E o familiar é sempre mais confortável que o desconhecido. 
Viver é ter incertezas. Percebemos o quão difícil isto pode ser, pois ao abandonarmos as nossas antigas convicções, perdemos o referencial que sempre nos guiou. E nem sempre dispomos imediatamente de conceitos novos e mais adequados, ou seja, por um tempo, conviveremos com dúvidas. Se isto não me faz mais sentido então qual será o caminho?

Para poder viver em paz com o permanente processo de aprimoramento e mudança é preciso aceitar o convívio com as dúvidas e a angústia que elas causam. E posto isso, felizes os que mudam de ideias, pois questionam o sentido das coisas e pensam sobre o que lhes faz ou não sentido.

Interiores


Gosto de interiores. Talvez porque as casas espelham a alma de quem lá mora. Não se quer demasiado cheia nem demasiado vazia. Talvez assim na exacta medida do que se precisa e do que se dispensa. É necessário saber guardar e igualmente importante deixar partir. Algures nesse equilíbrio está o interior 'perfeito'. O nosso e o da nossa casa.

Conhece-te a ti mesmo


quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Conversas nas Entrelinhas


— Mãe, fazes-me companhia até eu adormecer?
— Sim, filho. Ficarei contigo até ao dia em que fores crescido o suficiente para já não precisares de mim para adormecer.
— Obrigado, por me ajudares com os meus medos de pequenino. Um dia quando for grande vou ser o maior e o mais forte e lembrar-me-ei da tua paciência. E estarei lá para ti quando precisares.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

sábado, 30 de agosto de 2014

Vida Interna

"Nunca estou só", dizia-me ele, já velho. "Estou sempre com os meus pensamentos". E tinha ainda a música.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Curiosidade, Motor de Expansão


A curiosidade é um dos indicadores de saúde mental. Sinal de mente em expansão, insaturada, que quer conhecer e perceber mais e melhor o mundo em que se insere. O seu e o dos outros, ou seja, o nosso mundo interno (os nossos desejos, sonhos e angústias) e o mundo interno dos outros (na medida em que é possível conhecer aqueles que nos rodeiam). E ainda conhecer o mundo propriamente dito, a chamada realidade e suas manifestações: cultura, política, ciência ou geografia. Tanto há para conhecer que é de estranhar quando não há o menor sinal de interesse em perceber um pouco melhor este lugar (mente, corpo e planeta) onde moramos. Nas crianças, a curiosidade é um acto espontâneo. Pelo menos, até ao dia em que seja castrado. Pois nem sempre a curiosidade infantil é bem recebida e quando assim é, a mente começa a definhar ainda antes de se poder expandir. Perguntar é sinal de reflexão. Querer saber é indicador de entusiasmo. Estudar, experimentar e pensar são os promotores da evolução. Se assim não fosse, se nos bastasse a rotina mecânica de um quotidiano qualquer, ainda hoje viveríamos nas cavernas, sem fogo, sem roda e sem nada do que hoje conhecemos.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Respirar


Não somos máquinas, somos pessoas. É importante poder respirar. Entre tarefas, entre assuntos, entre relações. Num mundo que bate palmas àqueles que vivem em "modo TGV" (que vivem um dia com 24h como se ele tivesse 36h) é difícil fazer crescer esta ideia, mas que fique a semente, pois em solo fértil, germinará. 

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Histórias de Desespero e de Esperança


Podíamos contar uma história, que pode ser a história de qualquer um de nós. Por norma, estas histórias começam com esperança, nem que seja por dois minutos. Depois, mais cedo ou mais tarde, acabaremos por conhecer o desânimo. Perante um desânimo de cadência continuada, irrompe então o desespero. E é aí, no lugar do desespero, que a história sempre se divide em dois finais diferentes: ou retomamos o caminho da esperança, ou perdemos a fé nas coisas boas e entregamo-nos a uma qualquer forma de desistência.
Assim, o desespero e a esperança são dois sentimentos antagónicos no que toca à reacção às contrariedades, sempre em função daquilo que esperamos da vida. Esperança é fé e entusiasmo. Se na nossa história encontramos sempre algo em que acreditar, que nos segure e nos empurre em frente, é porque somos fundamentalmente movidos a esperança. E isso é bom. Desespero é a sensação de exaustão. É o fim de um caminho. Irrompe nos momentos em que não se espera absolutamente mais nada de uma situação. É, no entanto, por isto que muitos pensadores defendem que a esperança vem depois do desespero. A exaustão pode proporcionar rupturas importantes na nossa vida. Nem todas as crises são más.

E a verdade é que, não raras vezes, oscilamos entre ambos, conforme os tempos e as circunstâncias. Os momentos de desespero fazem, sim, parte da vida, contudo, é na capacidade de reencontrar o caminho da esperança que mora a saúde mental. Afastamo-nos da saúde mental quando deparamos com desesperos tão desesperados que se torna impossível recorrer ao pensamento e retomar o caminho do desenvolvimento. Não é invulgar, pois o desespero é, de certa forma, uma emoção-limite, algo da ordem do insuportável. E é muito doloroso passar por estes estados emocionais. Seria possível viver uma vida inteira deprimido, mas não seria possível viver a vida inteira em desespero, seria um desgaste que o corpo e a mente não aguentariam. Assim, o desespero surge em picos e vai alternando com alguma serenidade que, por norma, conseguimos sempre reencontrar. Com maior ou menor eficácia, a maioria de nós consegue embalar-se nos momentos mais difíceis e reencontrar uma forma de tornar a acreditar. Na mais pequena coisa que seja. A maioria de nós reencontra sempre a esperança dentro de si. Até porque o fim de um caminho permite sempre a descoberta de outro. E é nessa capacidade de reencontrar novos trilhos que reside a esperança. Sabemos que depois de cada tempestade vem sempre a bonança, como diz o povo.

sábado, 2 de agosto de 2014

Sobre a Pequenez

Randy P. Martin Photography

Somos pequeninos. Somos imensamente pequenos. Somos tão pequenos que quando nos lembramos disso nos assustamos com a nossa fragilidade. Por outro lado, como somos pequenos também temos muito para nos entreter. Muito que descobrir. Podemos encontrar coisas novas em cada esquina. Podemos surpreender-nos com milhões de quilómetros quadrados de desconhecido e com biliões de pessoas que ainda não pudemos conhecer. O que seria se o mundo fosse à nossa escala e fossemos obrigados a habitar a vida inteira circunscritos a três ou quatro metros de terreno? Definharíamos. Somos pequeninos mas temos um mundo inteiro à nossa espera. Somos pequeninos, mas não pequeninos o suficiente para sermos insignificantes. Podemos fazer a diferença. E o melhor é que podemos simultaneamente passar despercebidos. Podemos errar e fazer disparates sem que o mundo se desmorone em absoluto por nossa responsabilidade. Somos pequeninos e isso não é necessariamente mau, pelo contrário, é um mundo inteiro de possibilidades.